A “arquitectura da opressão”
O abuso de poder faz escola à escala global, com o Vírus a ser usado como desculpa
O presidente do Governo não se conteve e considerou como “menos felizes” as declarações de hoteleiros madeirenses que se limitaram a contestar objectivamente decisões que lhes mexem com o bolso e que por terem sido mal comunicadas, foram polémicas.
Não espanta que Miguel Albuquerque assim pense e coloque a questão num patamar que não dignifica a necessária cooperação entre as partes para que a retoma do motor da economia regional não seja miragem. Perigoso é fazer passar a ideia que quem discorda do governo só é tolerável porque “é a democracia”. Porventura, por distracção, Albuquerque não terá pesado o alcance da desconsideração com este sucedâneo do “logo se vê”, aplicando a quem muito dá à sociedade um correctivo inconcebível.
Ora, os hoteleiros que reclamaram do défice comunicacional em torno da obrigatoriedade do uso máscaras são tão madeirenses como todos os que insinuaram serem falsos os anunciados cancelamentos de reservas nos hotéis e nas empresas de animação turística. Mais, são empregadores de centenas de conterrâneos e contribuintes líquidos de uma Região em que algumas vozes falam muitas vezes de barriga farta e de nariz de fora mas que ignoram quem lhes põe pão na mesa e horizontes na vida. A intolerância, o desrespeito pela diversidade de opiniões e a falta de cultura democrática vê-se quando alguns deixam cair a máscara. E desta vez não foi excepção.
A postura do governante insular não é exclusiva. Na semana passada líamos ecos da entrevista à ‘Vice’ de Edward Snowden, o denunciante das técnicas de vigilância estatal da norte-americana NSA. Referia que as leis de emergência e de limitação às liberdades perduram de forma injustificada bem depois de serem necessárias; que há cidadãos que aceitam cada vez mais uma vigilância acrescida a troco de uma pretensa sensação de segurança e, até, populações inteiras geo-localizadas, identificadas e diagnosticadas pelos smartphones que trazem no bolso e, quase sempre, nas mãos. Snowden deixa um alerta para tudo aquilo que uma pandemia como a Covid-19 pode significar para as liberdades individuais e para a democracia. Considera que “muitos governos vão – ou, melhor, já estão a – aproveitar esta pandemia para avançar na “arquitectura da opressão”.
“À medida que o autoritarismo se alastra, que as leis de emergência proliferam, à medida que nós sacrificamos os nossos direitos também estamos a sacrificar a nossa capacidade para deter o avanço no sentido de um mundo menos liberal e menos livre”, lê-se na entrevista que foi resumida em Portugal pelo Observador.
Este tipo de abusos multiplicam-se como cogumelos por esse mundo além e são tão evidentes nos EUA que levaram o Twitter e Facebook a bloquear publicações da campanha de Trump. Tudo porque o Presidente norte-americano surgia em vídeo a afirmar que as crianças são “praticamente imunes” à covid-19. As duas redes sociais mexeram-se considerando a peça de desinformação. Um hábito que contrasta com os receios dos que tudo permitem até ao dia em que, sem espaço de manobra, deixam de ter vida própria, voz activa e poder de influência.
Na Madeira não é só o governo que padece do abuso de poder que compromete a dignidade humana. Recebemos nos últimos tempos denúncias contra alguns exploradores sem escrúpulos que submetem trabalhadores a práticas impensáveis, a tarefas que não são das suas competências, a sacrifícios que não estão obrigados a fazer, chantageando-os com a ameaça de desemprego e de perda de salário. Alegam que são consequências da covid que por agora tudo paga e desculpa. Quem se sentir atingido que emende procedimentos a tempo. Quando forem notícia já será tarde.
O maldito vírus não mata mas continua assim a fazer das suas. Sobretudo quando é usado pelos poderes para oprimir, negar oportunidades e destruir sonhos.