O legado de Dorothea Kasner
Ângela Dorothea nasceu na Alemanha do pós-guerra, já então dividida, mas ainda a varrer as poeiras do fascismo. A nação era mais pobre do que hoje, envergonhada, a tentar encontrar o seu caminho.
Filha de um pai religioso, pastor luterano numa pequena localidade. Ela, de forte personalidade, curiosa, insatisfeita com as imposições, cedo se confrontou com as nuances deste mundo. Querer liberdade, mas viver na RDA comunista. Viver o cristianismo semiclandestino, mas ter de fazer o exame obrigatório da disciplina escolar de Marxismo (que passou com nota à tangente).
Dorothea até fez parte da juventude comunista, a Freie Deutsche Jugend, adesão habitual a todos que queriam ter acesso à faculdade na RDA! No entanto, cada vez mais discordava da praxis passada do seu país (a tentar esquecer rapidamente o holocausto) mas também da actual praxis (um muro a separar duas noções distintas de liberdade).
No fim da adolescência, Dorothea escolhe o seu caminho, o caminho da Ciência.
Embrenha-se na descoberta do discurso fundamentado e pensamento analista. Estuda, aprende, descobre. Segue as pisadas dos alemães Einstein, Planck, Boltzmann. Faz o seu doutoramento em física teórica, em que investiga a mecânica quântica: “O mecanismo das reações de decomposição e o cálculo das constantes de velocidade baseado em métodos quântico-químicos”. Publica trabalhos científicos. Inicia, o que poderia ser, uma carreira promissora como cientista.
Este desprendimento dos postulados e o seu espírito curioso, analista, serão de grande mais valia no futuro. Ela pensa pela sua cabeça, mas sabe muito bem que em ciência, nenhum conhecimento é definitivo e a aprendizagem é permanente. Sabe bem que ouvir é melhor que asneirar…
Casa com o físico Ulrich Merkel, e então assume o nome de casada, Ângela Merkel.
É Na sauna que está quando o muro caí, e aí desperta para a política. E que despertar! Assim assume-se competente e lutadora pelas causas dos jovens e das mulheres alemãs, tal como das ambientais. Foi Ministra da juventude, da igualdade e do ambiente. O seu plano Energiewende 2020 troca, em 10 anos, a energia nuclear por fontes limpas e, em breve, dispensará o carvão do Ruhr.
Despois, é Chanceler e, aí, o legado é impressionante.
É nos mandatos de Merckel que o Euro ganha a dignidade e a força perdida pelo dólar. É com ela que o Mundo sabe que há um pensamento europeu, distinto do americano e chines.
Nos seus mandatos completou a integração alemã. A nação germânica é hoje uma garantia de estabilidade e prosperidade para toda a restante Europa. E, tal como Koln integrou com mestria um milhão de turcos, Merkel fez o mesmo com os sírios e afegãos. Há certamente resistências, felizmente minoritárias, em especial da direita revivalista, ou o passado germânico não fosse o que foi.
Tratou com respeito Israel e os palestinianos, negociou o acordo de desnuclearização com o Irão, que os americanos, entretanto desbarataram. Sem disparar um tiro, ela trava as pretensões de Putin de continuar a anexar a Ucrânia e desestabilizar os três países bálticos. Disse não à Turquia de Erdogan pois, ser europeu significa, comportar-se como tal.
Resolveu a crise financeira, convencendo todos da necessidade de rigor financeiro. Confesso ser algo confrangedor ver partidos como o PCP, e BE, votarem agora sistematicamente orçamentos ultra criteriosos nos défices, isto depois de terem dito tudo, e mais alguma coisa, sobre esse mesmo rigor.
Merckel solidificou as relações económicas com a China e Índia, trazendo ganhos económicos para a Europa, que a América não obtém. E, ao contrário de Trump, Bolsonaro e Johnson, distanciou-se do populismo pseudo-conservador que agora pululam.
Teve mestria na forma como legalizou os casamentos do mesmo sexo na Alemanha, fugindo às polémicas de outras paragens. Mostra como um país gerido com conselhos da ciência, e sem preconceitos, gere muito melhor uma pandemia. E sem levantar a voz, ela fez-se ouvir, mais do que muitos políticos vozeirões.
E Merkel é conhecida pela simplicidade. A calça-casaco que usa, só varia na cor. Vive num apartamento, em Berlim, com o actual marido, também ele doutorado em física. Os alemães gostam do seu estilo. Apelidaram-na de “Mutti” (“Mamã”, traduzido).
Ainda há quem diga que direita não tem líderes, nem referencias!
Conservadora, europeísta, prudente e humilde, aquela que é agora considerada o líder mais poderoso do mundo mostra, sem sobra de dúvidas, que ainda há pessoas a quem a causa pública não significa oportunismo.
Considero-me pessoa de direita, mas em tudo distante do populismo folclórico e intolerante, e cujos exemplos históricos demonstram, vezes sem conta, que só trazerem cicatrizes.
Visitei uma vez Auschwitz-Birkenau. Não preciso de o voltar a fazer.
E o passado da Alemanha é bem pesado. Como ilustra a banda hard rock Rammstein, “Alemanha, o teu hálito frio; quero amar-se e condenar-te; uma bênção e uma maldição”. Mas bem à altura de Dorothea Kasner.