Crónicas

O problema é o Outro

Esta heresia trouxe-lhe consolo. Afinal o Outro, que Carlos julgava civilizado, domesticado, controlável, era tão bicho como o Bicho. Se o homem é o lobo do homem, por que raio não haveria também de ser o Bicho?

O Diário de 25 de agosto estala com estrondo no mesão da sala. Na capa, o anúncio: um apresentador de televisão estava de quarentena em Lisboa, forçada pelo contacto com um infectado no Porto Santo. O nosso herói recosta-se na cadeira. Bate um recém-aberto maço de Marlboro como quem faz rufar um tambor de guerra, e cancela mentalmente os planos que destinara para aquela terça-feira. O Verão arrastara-o para um enfado lânguido e débil, que o título felizmente interrompera com alarme. Chegara o momento, a sequela para os dias terríveis de Abril. O Bicho estava de volta. E o Bicho não sabia, mas Carlos, um madeirense a outros títulos banal, era o seu pior e mais jurado inimigo – e jurava acabar com ele ainda antes de acabar com o tabaco.

O atiçar castiço do isqueiro sinalizou a partida. As baforadas do primeiro cigarro sobrevoaram as notícias, comandadas por narinas soturnas e fumegantes como os canos de uma espingarda surdamente disparada. Fumando, Carlos registava nomes, datas, motivações e locais com a devoção amanuense de um monge beneditino. Festejou a conclusão desta tarefa com um café, despejado a escaldar sobre uma recém-nascida úlcera. Massajando o estômago, convencendo-se de que não seria nada, começou a rolar o dedo pelas redes sociais, chutando perguntas para alvos seleccionados. Ao lado, num código que só ele compreendia, o papel ia-se compondo. O Bicho tinha desembarque, estadia, partida, contactos públicos e privados. Em cada casa, Carlos abriu chavetas, listas e ramificações: por cada suspeito, a família e consortes; por cada hotel, os hóspedes; por cada restaurante, os clientes; por cada voo, os utentes; e por aí adiante.

Diante desta devassa, em parte selvática e forçada, em parte flagrantemente errada, a alma de Carlos estofava-se do mais puro prazer dedutivo. O registo copioso dos hábitos, das relações, do trânsito da sociedade madeirense atribuía-lhe uma vantagem preciosa sobre o Bicho, que agora lhe parecia um soldado raso, ridículo, tentando penetrar à pedrada nas inexpugnáveis muralhas de um castelo medieval.

Mas a alma de Carlos não desfrutava ainda, porém, da merecida quietação. Ao esquema faltava um elemento humano, táctil. Felizmente, Carlos sabia onde o repescar. Afinal, como Sherlock tinha Watson, Carlos tinha Castro. E Castro era uma instituição, a jóia da coroa da bilhardice madeirense. Como todos os bilhardeiros, armazenara quantidades copiosas de informação inútil, que traficava consoante o seu valor relativo para os bilhardeiros menores que consigo conferenciavam. O que distinguia Castro, todavia, era a sua personalidade consensual e amaciadora, que lhe granjeava a proeza de ser simultaneamente considerado pessoa de confiança e uma boca de trapo – de modos que sabia tudo.

“Só nesta terra”, pensava Carlos, nos dois toques que Castro demorou a atender.

Castro começava a estranhar a demora do seu querido Carlos. Pois que se preparasse. Havia um caso num prédio nos Piornais. Um casal de venezuelanos, ela testara positivo, ele negativo. Os vizinhos quiseram que fossem para um hotel, mas nada feito. Essa era a versão mais consistente, mas havia rumores contraditórios. O “Já” António, da óptica, dizia que o prédio não era nos Piornais, mas nos Barreiros, e que os venezuelanos tinham sido testados porque tinham contactado com a senhora Ermelinda, irmã de um funcionário, ela sim infectada, e agora forçada a uma quarentena assintomática em Santana. Quanto ao Porto Santo, Castro assinalara com segurança a identidade e paradeiro de oito das pessoas testadas, não se comprometendo quanto às restantes. Fala-se numa pequena que passou as noites pendurada no muro da bomba de gasolina, e num casal que jantou com 30 pessoas num conhecido restaurante de peixe. Tudo em aberto, portanto, quanto a esses “filhas da p…”.

Pouco depois de disfarçar a natureza interesseira da chamada com uma pergunta sobre a família, Carlos desligou. Acendeu o décimo segundo cigarro, amargo e catarrento à custa dos boatos e suspeições de Castro.

Em que prédio estivera afinal o Bicho? Em que avião viajara? Em que quartos dormira? Era madeirense, venezuelano, porto-santense, continental, bife? Estava incubado ou consumado? Adormecido mas a solta com a pequena, ou acordado mas confinado com a Ermelinda? Porra! O Bicho, antes sólido e diminuto, imiscuía-se como um fantasma entre as brechas de um conhecimento que Carlos só ilusoriamente chegou a possuir. Entre chaves, chavetas, genealogias e precauções, rabiscara no papelito a Madeira inteira!

Ao décimo sexto cigarro, Carlos concluiu que desperdiçara os 15 precedentes, e repetiu as injúrias “filhas das p…” de Castro. Já com o lume perto da beata, a embriaguez da nicotina trouxe-lhe à cabeça as palavras de uma professora no Prós e Contras: “o problema não é o vírus. O problema é o outro”.

Esta heresia trouxe-lhe consolo. Afinal o Outro, que Carlos julgava civilizado, domesticado, controlável, era tão bicho como o Bicho. Se o homem é o lobo do homem, por que raio não haveria também de ser o Bicho?

Cigarro a cigarro, o Bicho reconfigurava-se-lhe como um produto da desobediência civil. O comércio, os serviços, os transportes, a hotelaria, o consumo, o rebuliço da subsistência pareciam-lhe esgazeados e impertinentes. A pulsão de vida do semelhante, uma irresponsabilidade. Deplorava que o Bicho fosse indomável na medida em que deplorava que o Homem também o fosse. E ao vigésimo cigarro sonhou, sem corar, com um mundo submetido à sua regra, despoticamente vigiado por Castro e os seus algozes.

Alheias a estas congeminações, dentro de Carlos espreitavam a úlcera e, entre o alcatrão dos seus pulmões, talvez uma coisa pior. Ensinar-lhe-iam, talvez, o que teimava por esquecer: que Carlos era o Outro para si mesmo. Com um pouco menos de cuidado, seria, isolado, o seu próprio Bicho. E o seu Inferno também.

P.S. O sistema de gestão de destino “Madeira Safe to Discover” foi soberbamente concebido e melhor executado, e é para a Região uma justa fonte de confiança e orgulho, que contrasta com a aselhice e irresponsabilidade do aeroporto de Faro e de outras estações de transporte continentais. Como tudo o que é bem feito, parece fácil. Não é. Quem nele trabalhou está de categóricos parabéns.

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