Crónicas

Resistir

Não sei se será pior de tudo o que já vivi e, em quase 50 anos, passei por três resgates do FMI, atravessei a infância ainda no rescaldo da revolução e dos delírios e excessos do processo revolucionário

Está um dia de céu azul e eu gosto de dias assim, limpos e brilhantes, mas o tempo engana e, assim que meto o nariz fora da janela, chega-me o bafo húmido, aquela coisa que se pega a tudo, que cola a roupa ao corpo e se mete em todas as conversas. Somos sempre corrigidos, não é o calor, é a humidade, é isso que nos consome. E é como a chuva, nunca nos habituamos, parece que nos apanha desprevenidos conforme os meses correm para o Outono.

Este calor anuncia o fim do verão, as vindimas e o regresso das aulas que, este ano, ninguém sabe ainda como serão. Certamente, de máscara e com muito gel para desinfectar as mãos, embora as notícias digam que está a caminho uma vacina e que, se assim for, mais depressa voltamos ao normal. Não sei se sabemos já o que é o normal, mas parece que, quando se for a praia, a realidade vai cair-nos em cima.

O mar e sol curam quase tudo, os dias cinzentos pesam demais e, nessa altura, vai pesar tudo o que a pandemia nos roubou, do trabalho aos abraços que não demos, os jantares que ficaram por fazer, as oportunidades que cada um perdeu confinado em casa e, depois, neste lento despertar. Estamos vivos, salvámos muitos, mas vida e o futuro não esperam. Não foi uma guerra e ainda não acabou, mas, mais dia, menos dia, vamos ter de enfrentar as consequências.

Não sei se será pior de tudo o que já vivi e, em quase 50 anos, passei por três resgates do FMI, atravessei a infância ainda no rescaldo da revolução e dos delírios e excessos do processo revolucionário. Lembro-me de dizer na escola, quando o professor perguntou pela profissão dos pais, que o meu pai estava desempregado. Eu achava que era uma coisa importante, não se falava de outra coisa no noticiário da televisão, era disso e do custo de vida, do preço do cabaz, dos preços que estavam sempre a subir

E entrei na adolescência com o FMI a ditar as regras, em pleno esplendor da música POP, a sonhar com o que não podia ter. A minha mãe passava as noites agarrada ao bordado, enquanto o meu pai saltava de uma obra para outra e rezava por Invernos sem muita chuva. O dinheiro desaparecia por causa da inflação que, nesses anos, estava acima de 20%. Lembro-me de cobiçar umas sapatilhas Nike que, durante meses, ficaram na montra de uma loja no centro comercial do Infante. Nunca tive dinheiro para as comprar.

Mas, nós, lá por cima no Laranjal, resistimos. Fomos à escola, tivemos um bolo para a primeira comunhão e roupa nova para o crisma, não perdemos um Natal, nem uma lembrança pelos anos, que a minha mãe não queria que fosse diferente e, dava voltas às cabeça, para nos manter alimentados, limpos e felizes. E era capaz de ir ao fim do mundo e voltar. Eu sempre pensei que era corajosa, às vezes feita de ferro, demasiado fria num minuto e cheia de calor e poesia logo a seguir.

Nunca me ocorreu que as circunstâncias a obrigavam a dizer não ao dinheiro para o gelado e para o cinema, nem que cada vestido novo, cada entrada no Lido lhe custava muito, demais, mas é o melhor exemplo de resistência a crises que tenho.

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