«Dona de mim nem sou»*
Estamos quase no final de agosto e os casos e números da violência contra mulheres e crianças, pelo facto de serem mulheres, pelo facto de serem crianças, não nos deixam respirar de alívio
Na segunda semana de agosto, (mais) uma mulher de 55 anos foi assassinada em Portugal pelo ex-marido. A situação estava sinalizada, o casal separado há um ano, uma ordem de restrição e um dispositivo de localização atribuído à vítima. Um botão de pânico de nada serviu a esta mulher perante os oito tiros que lhe foram desferidos à queima-roupa. A ordem de restrição não foi suficientemente eficaz para um homem habituado a ser violento com a mulher com quem tinha casado e com quem tinha filhos.
Como muito bem ilustrou Francisca Magalhães de Barros num texto publicado no Jornal Sol, carregar num botão não chega quando se tem uma arma apontada à cabeça. Como bem refere a ativista, se em vez do dispositivo de localização se implementasse como norma as pulseiras eletrónicas a eficácia poderia ser bem maior, mas para tal é necessário o consentimento de quem agride. Caricato, não é? Que os direitos de quem agride se sobreponham aos direitos de quem é vítima. Com os custos elevadíssimos que conhecemos.
São já 10 as mulheres que foram assassinadas este ano por pessoas com quem mantinham ou mantiveram um relacionamento amoroso. Nesta contabilização está também incluída uma jovem que não tinha um relacionamento amoroso com o homem que a assassinou. Ele queria. Ela não. Ele achou que ela não tinha querer.
Estamos ainda em agosto e o ano já contabiliza isto tudo. A este número acresce 25 tentativas de homicídio a outras mulheres em contextos semelhantes. E desde que comecei a redigir este texto, já houve mais uma tentativa de homicídio a somar a estas 25 tentativas. Mas não se pense que é uma aberração apenas nacional.
Segundo os dados disponibilizados no «Global study on homicide - gender-related killing of women and girls», relativos a 2017, cerca de 50,000 mulheres e meninas foram assassinadas por parceiros íntimos ou familiares próximos (pais, mães, irmãos ou irmãs, tios, etc.): são 137 por dia, e em todas as regiões e em todos os países. Também segundo este relatório, que é da responsabilidade da United Nations Office on Drugs and Crime, se em termos globais os homens são as principais vítimas de homicídio, quando a motivação para o homicídio reside em estereótipos e papéis de género, a percentagem de assassinatos de mulheres e meninas é muito superior.
Esta semana, uma menina de 10 anos teve de interromper uma gravidez obviamente não desejada. O violador é um homem de 33 anos, marido de uma tia, e abusava da menina há quatro anos, desde que ela tinha seis anos. Não terá sido a única criança que, esta semana, está a braços com uma gravidez. No Brasil são realizadas seis interrupções da gravidez diárias a meninas entre os 10 e os 14 anos. Se este número parece inenarrável, que dizer do facto de que cerca de quatro meninas são violadas a cada 60 minutos?
Mas este caso específico saltou para a ordem do dia porque uma organização da extrema direita brasileira, liderada por uma mulher, divulgou a identidade da menina e o local onde o procedimento aconteceria. A equipa médica foi insultada, a menina também. Proporcionalmente, a ira era muito maior relativamente à criança do que ao adulto que a violou durante quatro anos. Foi apodada de «assassina» (ainda que um parto pudesse comportar consequências gravíssimas para a sua saúde e vida) e de «cachorra com cio», pelo facto de os abusos acontecerem há quatro anos. Mas não se pense que esta tendência para culpar a vítima – mesmo quando a vítima é uma criança e o agressor um adulto – é exclusiva do Brasil. Isabel Ventura, autora de «Medusa no palácio da justiça – uma história da violação sexual», lembra que «a figura da criança tentadora é antiga e tende a acentuar-se quando a idade e o género se interseccionam com a classe social.»
Segundo «A familiar face – violence in the lives of children and adolescents», relatório da Unicef, datado de novembro de 2017, a violência sexual contra crianças acontece em todos os países e afeta crianças de todas as faixas etárias e em diferentes contextos.
Estamos quase no final de agosto e os casos e números da violência contra mulheres e crianças, pelo facto de serem mulheres, pelo facto de serem crianças, não nos deixam respirar de alívio. O facto de sabermos que este é um problema transversal a vários países e regiões não nos deve descansar a consciência, bem pelo contrário. Significa que temos de repensar de forma muito séria os padrões que nos levam a relativizar e consentir com comportamentos violentos. Precisamos repensar a forma como nos relacionamos e os valores e costumes que consideramos aceitáveis. Ainda que a violência tenha contornos muito específicos em alguns casos, como é o caso da(s) violência(s) contra mulheres e a(s) violência(s) contra crianças, a tónica comum é sempre de dominação. E nestes casos – como também na violência com motivações étnicas e raciais – por norma a vítima é duplamente vitimada, na medida em que o seu testemunho é sempre posto em causa, por oposição à tendência de se desculpabilizar quem agride. Isto acontece em casos de violação, em casos de violência nas relações de intimidade, mas também nos casos que culminam em homicídio. Lembro-me da forma como foi escrutinado o comportamento de várias mulheres assassinadas, numa tentativa de justificar o comportamento do homicida. Vimos como recentemente o caráter de um homem foi violentado pela vontade de se justificar o seu homicida. Subjacente a tudo isto está a noção de que de alguma forma as vítimas são responsáveis por serem vítimas e que quem agride teve alguma razão no ato. E isto tem que ver com o lugar que cada um/a ocupa na organização social.
Tendo a concordar com Bell Hooks quando afirma que «A causa da violência contra as mulheres, da violência perpetrada pelos adultos contra as crianças, de todo o tipo de violência entre dominadores e dominados, é a noção filosófica ocidental da dominação hierárquica e da autoridade coerciva». De alguma forma, estas reações à violência atestam que se considera haver alguma legitimidade na violência por parte de quem domina, mesmo que implique o extermínio de quem é dominado/a. Enquanto não questionarmos e derrubarmos estes padrões, continuaremos a ter pessoas violentadas e assassinadas em função do género, da idade, da etnia e da cor. E continuaremos a contemporizar com quem trata meninas de 10 anos como «cachorra com cio» ou descreve um agressor que mata alguém enquanto diz que «o lugar de pretos é na sanzala» como um pobre velhinho de bengala.
*verso de um poema de Ana Luísa Amaral