Crónicas

As doenças de antes

Os adultos tinham outros males, doenças complicadas, o que nos parecia coisa de velhos e velhos, naquela altura, pareciam todas as pessoas acima de 30 anos.

Quando, no pico do calor, o pesquito passava a ponte do cemitério a prometer atum fresco as mulheres desconfiavam, que era costume haver gente nas urgências do hospital com queixas de picadas na pele. O atum estragado era assunto sério de modo, que durante anos, no Laranjal não se comia o peixe sem cozer até ficar seco, que mais valia acautelar do que ficar em apuros. No Laranjal, as doenças metiam respeito.

Não que houvesse muitas e, das que havia, umas tinham direito a médico e a pastilhas; as outras resolviam-se como as gripes: chá, mel, limão, uns dias sem ir à escola e uma canja de galinha ao jantar. Se disser que tenho saudades parece estranho, mas tenho. A minha mãe fazia-se outra, mais carinhosa, ficava ali à cabeceira até a febre passar e nunca nos negava um abraço quando a dor de ouvidos apertava. Claro que tenho saudades, disso e do gelado quando fui tirar as amígdalas.

E também havia muitas dores de dentes, que, nos anos 70 e 80, a saúde oral resumia-se a arrancar dentes e meter uma placa. O povo dizia que não valia o gasto e, quando o caso ficava sério, agarrava-se à cara e fazia fila na Cruz Vermelha, onde o médico não era esquisito para tirar dentes. Não me calhou, a minha mãe quis ser moderna e levou-me ao único médico que tinha escrito na placa “médico estomatologista”. Tinha consultório no prédio da AEG e chumbava dentes sem anestesia. Lembro-me de estar à janela cheia de medo, a ver as pessoas a passar na rua e ainda hoje tenho a certeza de que os meus gritos se ouviram lá em baixo.

Mas as doenças, as suaves e as que metiam respeito, encaravam-se, não sei se por termos menos medo de morrer ou por pensarmos pouco. Lembro-me que, todos dias, todos os dias das férias, abríamos a porta a todas as possibilidades e todos os riscos: de comer atum estragado, de comer uvas ainda por lavar, de correr em cima dos muros e subir árvores, de cair, partir a cabeça, de ser picado por uma abelha, de andar à pedrada e ser atropelado pelo camião das canas de açúcar. E todas as tardes encontravámos o caminho para casa.

Os adultos tinham outros males, doenças complicadas, o que nos parecia coisa de velhos e velhos, naquela altura, pareciam todas as pessoas acima de 30 anos. Esses tinham coisas como complicações do nervo ciático, reumatismo e esgotamentos e falavam muito do que lhes doía, não havia conversa na quarta-feira dos bordados, quando a minha mãe entregava o pagamento às bordadeiras, que não acabasse em dores e em consultas ou em alguém que estava mal ou alguém que tinha ficado melhor.

Morrer e sofrer era, para aquelas senhoras de meia idade, a grande questão, o que as preocupava quando começavam a perder o brilho da juventude, o corpo pesava como que a avisar que não iam para novas e o melhor estava para trás, nas fotografias do casamento, ainda magras e de cabelo escuro. E, mesmo queixosas, até elas enfrentavam o que lhes calhava, viviam com isso e, na quarta-feira dos bordados, voltavam a lamentar-se.

Fechar Menu