“A pandemia da inatividade…”
Em pleno verão, a contas com a pandemia das nossas vidas (até ao momento), por vezes até parece que a vida está um pouco suspensa. Excetuando aqueles que tudo sabem, que nunca têm dúvidas e raramente se enganam, parece que existe um misto de sensações, entre o voltar à dita normalidade (que na maioria das vezes era tão criticada) e um desejo de mudança, mas sem que se saiba muito bem para onde se pode e quer ir…
De uma forma generalizada (embora as generalizações sejam perigosas), alguns indicadores parecem apontar que, ao nível do sistema educativo, as respostas dadas a uma situação “inesperada” como a que vivemos, foram muito satisfatórias relativamente à conclusão do ano letivo sem que se hipotecassem as expetativas e ambições dos alunos e demais intervenientes no processo educativo. De uma forma ligeira, sem tirar mérito a ninguém, nos diferentes níveis de decisão, diríamos que o nosso habitual “desenrascanço”, parece ter funcionado.
Em virtude de uma das principais medidas preventivas se situar ao nível do distanciamento físico e social, é natural que a área da Educação Física (EF), apesar de todo o empenho e engenho dos seus profissionais, tenha sido uma das que teve mais dificuldade em concretizar todo o potencial educativo que lhe está associado.
É que, ao contrário do que muitos ainda infelizmente pensam (e a culpa não é só deles), o que está em causa não deve ser um regresso a uma predominância da dimensão biológica visando uma “higienização do corpo” onde, de forma mais ou menos implícita, existe uma conceção dualista em que os “músculos” prevalecem em relação aos “neurónios”.
Daí que, por exemplo, colocar os alunos, em aulas síncronas ou assíncronas através de vídeos, a realizar uns “exercícios” cujos princípios ativos e comportamentos solicitados são predominantemente os das atividades desportivas individuais (mesmo que aparentemente sejam “gestos técnicos” de outro tipo de atividades), onde cada aluno centra a atenção no movimento que pretende realizar, não só é redutor como perigoso.
As atividades desportivas, utilizadas no âmbito da EF, são das mais poderosas ferramentas ao serviço do processo pedagógico para, de uma forma lúdica e motivante, desenvolver as capacidades e potencialidades de cada aluno, solicitando comportamentos de diálogo com o outro, de dinâmica de grupos e distribuição de funções, de análise e adaptação a contextos diversificados, de resposta a situações críticas, … ou seja, comportamentos típicos de atividades desportivas: de adaptação ao meio, de combate, de confrontação direta, coletivas, de grandes espaços, … tudo isto com o objetivo de desenvolver o domínio de si, o domínio relacional e o domínio do contexto, o que potencia a capacidade de adaptação, a tomada de decisão, a autonomia, a criatividade, a resiliência, a superação perante os desafios…
Alguns dizem que o que interessa é que os alunos se mexam, que façam alguma coisa, desde que o façam x minutos por dia. Aliás, dizem o mesmo em relação aos adultos.
Compreendo a ideia, mas é extremamente perigosa. É como se dissemos aos alunos/às pessoas em geral, que o que interessa é que comam, não interessa o quê. Pode parecer uma comparação forçada, mas não o é.
É preferível comer só arroz e feijão a não comer nada. É indicado para a saúde? Não, mas é preferível a morrer à fome. O mesmo se passa com a atividade física e desportiva em idade escolar ou nos adultos. É preferível fazer alguma coisa do que estar parado (desde que não existam contraindicações). Mas …
Sugiro que pensem no leque dos diferentes grupos de atividades desportivas com se fossem a roda dos alimentos. Será que queremos que as nossas crianças e jovens não aproveitem todo o potencial educativo da EF, condicionando-os a que “comam” só de um tipo de alimentos?
No atual contexto, o “desenrascanço educativo em geral” parece ter funcionado, contudo, agora não se trata de “desenrascar” mas de, partindo de cenários alternativos, estarmos melhor preparados.
Obviamente, quem tem funções de liderança terá de assumir as suas responsabilidades, porém isso não deve desresponsabilizar todos os que integram o sistema. Antes pelo contrário, em vez de se estar à espera de que venham “ordens de cima”, neste momento existe uma grande oportunidade para reclamar mais autonomia, maior flexibilidade e capacidade de resolução dos problemas de forma contextualizada a cada realidade educativa.
Há soluções e alternativas credíveis, seja ou não em contexto de pandemia, para dar um salto qualitativo ao nível da Escola em geral e da EF em particular. Assim, queiramos e saibamos sair da nossa zona e conforto.