Crónicas

A Quinta dos Animais

“Animal Farm” é uma fábula política cuja tese central diz o seguinte: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Surgiu em português como “O Triunfo dos Porcos” e, mais tarde, como “A Quinta dos Animais” (uma tradução menos “pesada”).

Para os lados da freguesia dos Prazeres, parece que grassa, em surdina pouco discreta, uma guerrinha, talvez uma guerrilha, não entre os animais da Quinta, mas por causa dela. Aparentemente. A Quinta tem animais, mas já não tem porcos, que foram “banidos” pelo incómodo das almas mais sensíveis (há mais de sessenta anos, Sophia já escrevia: “As pessoas sensíveis não são capazes/De matar galinhas/Porém são capazes/De comer galinhas”).

A Quinta, de resto, ostenta o afável título de “Quinta Pedagógica”. Diz o povo que ela veio colocar os Prazeres “no mapa”: milhares de famílias e de turistas já a visitaram ao longo destes vinte anos. Projeto pioneiro e original que vem da iniciativa, persistência e gestão prospetiva do pároco local, Rui Sousa, ela concentra valências — da zoologia à botânica, da diversidade agrícola à galeria de arte — que se articulam num genuíno “universo cultural”, dando corpo a uma visão pastoral que cedo compreendeu o desafio de realizar um importante trabalho de promoção: hoje, é fácil ter a memória curta; mas, há vinte ou trinta anos, como era a vida por ali? O que sucedeu com a Casa das Mudas em termos de promoção da Calheta, visão e investimento que nos deram aquele que é porventura o melhor Centro Cultural da Madeira, poderia muito bem vir a suceder com a Quinta Pedagógica: bastaria a compreensão do seu potencial de “biodiversidade” (ambiente e cultura) e expandir, dignificar e promover de forma integrada um projeto-referência de enorme atratividade para residentes e estrangeiros. Nem seriam precisos os milhões do costume; antes, fundamental seria acreditar, ter visão e vontade política, perceber o alcance do que já se faz, e de quanto um projeto desses está em sintonia com o futuro: só falta acontecer.

Ainda mais duas palavrinhas. Quando um padre toma conta de uma paróquia, depois de conhecer o terreno que pisa e os desafios pastorais da missão, a dada altura vai ter de resolver, primeiro, dois problemas: um, dá pela jocosa designação de “beatério”; o outro, releva dos chamados “caciques”. Cada qual no seu mesquinho poder e nível de perfídia, são o retrógrado e o bloqueio, e não é possível progredir sem enfrentá-los e alijá-los borda fora, como se faz à carga inútil de um bote em mar alteroso. Foi possivelmente o que o Pároco dos Prazeres percebeu desde cedo: uma pastoral devocionista, incapaz de usar as mediações viáveis da sua realidade concreta, acaba por ser uma irrelevância; um discurso sobre Deus sem o mundo dos homens, acaba por ser o caminho mais curto para o tal “mundo sem Deus” de que muitos se queixam... Nos Prazeres, parece que o padre é alguém que usa a enxada e suja as mãos na terra, enxerta os pereiros novos e aproveita os frutos silvestres para ensaiar novas compotas. Também parece ser uma pessoa que sabe ler e escrever, que prepara as homilias e que consegue dizer alguma coisa sobre o estado do mundo. Tudo isso numa Quinta que quer ser ainda mais Pedagógica. Obviamente, com animais e plantas e arte e cultura, mas longe de dar qualquer hipótese ao “triunfo dos porcos”!

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