O Rali da Vida
A COVID 19 levou-nos quase tudo. Noutras paragens, levou o mais importante: a vida. Aqui, levou-nos o que lhe dá valor: a presença familiar, o convívio entre amigos, o trabalho, a economia e o ar livre
O Miguel Nunes tinha um sonho: ganhar o Rali Vinho Madeira. Depois de outras vitórias e títulos, faltava-lhe esse que eterniza nomes na História do automobilismo regional. Ao lado do Miguel Nunes, o João Paulo, com o mesmo sonho. Em 2017, o carro falhou e “ficou a mágoa”, mas ficou mais qualquer coisa: a força de um sonho. Estou convencido que, desta vez, como outras houve em que a ilha toda puxou pelo Alexandre Camacho, estava todo o mundo a torcer pelo sucesso do Miguel e do João - porque a história deles é a nossa história: de sonho, de persistência, de resistência e de conquista.
A COVID 19 levou-nos quase tudo. Noutras paragens, levou o mais importante: a vida. Aqui, levou-nos o que lhe dá valor: a presença familiar, o convívio entre amigos, o trabalho, a economia e o ar livre. Levou-nos quase tudo, mas não nos levou a capacidade de nos reerguermos. Há quem ainda não tenha percebido nada do que este Rali, este em especial, representou para os madeirenses. O Rali Vinho Madeira é o maior evento desportivo, social e cultural da Região Autónoma da Madeira e tem um impacto na economia local que não pode ser ignorado. É certo que não pode servir para justificar falhanços comunicacionais, ou outros de outro tipo, mas não deixa de ser a nossa maior festa popular. Dura dois, três, quatro dias, para alguns uma semana inteira, ou mais ainda. Este ano, bom, este ano conseguiu ser ainda mais especial, porque enquanto a pandemia continua a ameaçar levar-nos tudo, nós respondemos com a energia da festa da vida sobre o medo da morte, da esperança sobre a descrença, da confiança sobre a vigilância: da vida que tem de continuar apesar da ameaça que enfrentamos, porque não há como fechar uma sociedade inteira para sempre, nem como torná-la instantaneamente estéril; da esperança, porque apesar de todas as dificuldades nunca deixámos, nem deixaremos de tê-la; e da confiança nas organizações, nas decisões no tempo mais difícil e nos outros - nos restantes cidadãos, na sua capacidade de discernimento e no seu comportamento, que precisa de mais responsabilização e menos imposição de quem aparentemente acredita mais em radicalismos do que no Estado de Direito.
Nem tudo correu bem no Rali: ocasionalmente houve ajuntamentos a mais, máscaras a menos e desilusões impiedosas. Que o digam o Rui Pinto e o Ricardo Ventura, o Pedro Paixão e o Luís Rodrigues, ou tantos outros que o destino fez com que não chegassem ao fim. Mas também houve lições de persistência, onde a do João Silva também sobressai, e de resistência, como a do José Camacho e Nicodemo Câmara. A vida é um rali de longo curso, como o Vinho Madeira, feita de várias voltas, percalços, derrotas e vitórias. É como a política: não é um sprint de recorde fácil, mas uma maratona de consistência - e quem sabe de mecânica, sabe que, prova após prova, todos os parafusos contam e quem tenta livrar-se de peso a mais, julgando-o morto, arrisca-se a bater de frente na próxima parede, semelhante ao burro do ditado que vivia na ilusão de que seria ela a sair da frente. Os madeirenses voltaram a mostrar que conhecem melhor do que ninguém as estradas que percorrem, dispensando lições alheias.
A vida tem mais encanto se for vivida com gosto, mesmo nos tempos mais duros, como o espectáculo do Cláudio e Alípio Nóbrega lembra. Tem ainda mais gosto se for vivida à conquista de sonhos, que não se mudam ao primeiro obstáculo, nem perante as mais difíceis provações - mesmo que tenham a dureza de uma pandemia. No rali da vida, o Miguel Nunes e o João Paulo alumiaram caminho, recordando-nos que os sonhos, como o Rali Vinho Madeira, são uma festa de todos. Longa vida!