Sermão de um idiota aos carneiros
Aos homens retirou Deus a vergonha na cara. Os grandes são hoje prepotentes, vaidosos, parasitas, devotadamente ambiciosos, hipócritas, traidores, falsos, fingidos, flibusteiros, perniciosos
1. No grego, um idiota é um indivíduo, uma espécie de entidade privada. Um homem comum, um plebeu. Isto não faz dele um ignorante. Mas também o pode ser.
Sinto-me, cada vez, mais um idiota. Se Vieira, que é para mim o maior escritor da língua portuguesa, teve a habilidade de imaginar uma conversa de Santo António com os peixes, este idiota não podia senão, por falta de demonstrada capacidade, pôr-se a conversar com carneiros.
2. Depois de andar a pregar aos 4 cantos da terra, o idiota lambeu uma pedra de sal e subiu ao cimo do monte. Abriu os braços, pigarreou para aclarar a voz e disse em tom de desafio: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os carneiros.”
E não aconteceu nada. Nem um lanoso ocorreu ao chamado. Depois de ter repetido o pedido por quatro vezes, o idiota voltou a abrir os braços e chamou em voz tonitruante: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os carneiros.”
Talvez pelo medo do vozeirão, do meio da erva emergiram duas cabeças lãzudas. Dois carneiros de fraca figura, magros que só vendo, de sexo indistinguível. Apoiados um no outro, subiram o morro.
O idiota começou a pregar e eles ouviram com o olhar ausente típico dos cordeiros.
“Se querem que vos pregue sobre a democracia, dêem-nos outra. Porque nesta, para sermos entendidos, temos de pregar como eles: tudo dizendo, sem dizer absolutamente nada.
Muito preguei por todo o lado e de toda a maneira. Fizesse chuva ou fizesse sol. No meio de poucos e no meio de ainda menos. Dizendo das minhas verdades, sólidas e verdadeiras, da necessidade de emendar os erros e de abrir caminhos de futuro. De ter a visão que resulta da soma das partes e corrigir as miopias que não deixam ver para além do umbigo.
Vim hoje aqui pregar aos carneiros, porque sou um idiota. Um idiota porque convencido da utilidade de pensar diferente, da necessidade de olhar o longe, da obrigação de conseguir ler a miragem. Um idiota porque procuro ver noutros, respostas que se nos adequem, que entende a nossa fraca dimensão geográfica e humana, que sabe que não somos superiores nem melhores, que somos, isso sim, diferentes.
Prego agora aos carneiros porque me cansei de o fazer aos burros que, de fato e gravata, procuram passar por homens de responsabilidade e saber. Pobres ignorantes carregados da empáfia das mulas, mas, ao contrário destas, com capacidade de reprodução. Tristes bardotos que não percebem os caminhos da dignidade. Lamentáveis jericos que nem soletrar “boa governança” conseguem. Desenganem-se, caros carneiros, se pensam que os que se lhes opõem, nos cenáculos e tribunas costumeiros, são melhores. Como toda a moeda que tem dois lados, também aqui uns são “cara” e os outros “coroa”, mas a excreção é a mesma.
Aos homens retirou Deus a vergonha na cara. Os grandes são hoje prepotentes, vaidosos, parasitas, devotadamente ambiciosos, hipócritas, traidores, falsos, fingidos, flibusteiros, perniciosos. Benzem-se com uma mão e não tiram a outra do bolso onde guardam a corrupção, o compadrio, o nepotismo, o enriquecimento indevido. Como se, quando chegarem ao céu, pudessem comprar a entrada. Descansem que têm lugar marcado... no quinto dos infernos, na morada dos que cometem a heresia de renegar o humanismo.
Sou, assim, aqui chegado, caros carneiros. Têm vocês muitas qualidades, ouvem e, quando falam, dizem sempre que “éééééééé”. Porque, com dificuldade em entender, sois obedientes. Sois cordatos e, basta olhar, para perceber da vossa aparente atenção profunda, quase devocional.
São vocês a razão de ser dos homens, pois colocam-nos nos altares e ali os sustentam. Mas cuidem-se e não se misturem.
Quanto mais longe, melhor. Deus vos livre do trato e familiaridade com tais entidades.
Também eu, confesso idiota, procuro fugir desta estirpe de homens. Escondo-me, pinto-me de todas as cores, se preciso mudo de nome. Mantenho que sou idiota, pois percebi que é essa a melhor maneira de os manter afastados.
Só não consigo uma coisa, a solidão do eremita. Deixei-me, por demais, socializar. Mas hoje só preciso de vós, desse vosso olhar de carneiro mal morto que nada percebe e que tão bem serve para sustentar as idiotias que me ocorrem.
Como todos os pregadores, tenho duas qualidades: louvar o que está bem e denunciar o que vai mal. Louvar o bom para que este persista e denunciar o mal para nos preservar dele. Como nem homens nem jumentos me ouvem, dirijo-me a vós, esperançoso de que nem só de lã vivam os carneiros.
Aos homens deu Deus a razão e, com a razão, o livre arbítrio. Pouco uso lhe deram, invejosos que sempre foram dos asnos que procuraram imitar. Vós, carneiros, não tendes razão nem possibilidade de escolha. Resta-vos o tosão, a cabeça dura e o açougue. Seguem o que bale mais alto e com três lérias vos convencem.
Os tempos que aí vêm não serão bons para carneiros. Melhor dito, os tempos serão sempre maus para carneiros. Estes, os que vivemos, também vão ser terríveis para os homens e para os jegues. Serão tempos de pouca ou nenhuma abundância. Falhos de riqueza e ineptos para a poupança. Tempos em que vamos andar de cavalo para burro. Tempos de gravíssimos problemas sociais, falta de trabalho, fome.
E o que fazem os homens? Comportam-se como avantesmas. Refugiam-se nas incompetências que sempre o foram, discutem formas em vez de conteúdos, guerreiam-se, mais do que sempre, por coisas sem sentido e sem saída. Em vez de lançarem o sal à terra para assim a preservar, em vez de lançarem a clarividência uns aos outros, persistem na caturrice e na discussão sobre quem é mais, maior e melhor.
Nós, os idiotas, a pregar aos carneiros, e vós, os carneiros, a serem carneiros. Percebei carneiros que o melhor que tendes a fazer é ficar longe desta laia de humanos. Quanto mais buscais a felicidade, mais tendes que vos afastar desta gente.
Como São Francisco de Assis, quanto mais conheço certos homens, mais gosto dos animais.
Vós, carneiros, tendes as pulgas para vos incomodar. Coçam-se e mordem-nas com fulgor. Eles, os outros, têm agarradas carraças que acarinham e tratam com cuidado. São elas quem lhes sussurra ao ouvido o que gostam de ouvir. São as carraças quem lhes dá nota de como são bons e infalíveis. Se não fossem eles, o mal que estaríamos, dizem, enquanto lhes chupam o sangue.
Os culpados do estado a que chegámos, sois vós carneiros. A culpa é toda vossa. Porque ouvis sem perceber, porque olhais com esse olhar ausente que vos impede de ver, porque sentis o ferro no lombo e vos limitais a berrar que “éééééé”. Porque tendes na mão a possibilidade de mudar e persistis em manter tudo na mesma, quando vos compete fazer tremer esses homens. Precisais de luz. Precisais, como disse o poeta, que Cristo “em vez de ter morrido n’uma cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que lhe abriu o peito, para com ela te rasgar os olhos da cara. Para deixar entrar claridade para dentro de ti pelos buracos dos teus olhos rasgados.”
Dois carneiros juntos chegam para fazer uma carneirada. Foi pela carneirada que aqui chegámos. Da carneirada fazem tanto parte os que votando o fazem no mesmo, ou no mais do mesmo, como os que acham que mudam alguma coisa recusando-se a votar. Estes são como os túbaros, estão lá mas não participam.
Que Deus vos proteja e abençoe, com a lucidez que não têm.”
3. E, agora sim, vou de férias. Até um dia destes.