Ofício de arquitecto
Arquitectura é, primeiro que tudo, a adequação de um espaço a uma determinada função
O arquitecto com mais obra construída no nosso país tem hoje 69 anos de idade e chama-se Regulamento Geral das Edificações Urbanas. O RGEU, diminutivo usado pelos mais próximos, está hoje desactualizado. Atingiu a idade da reforma que, aliás, se está a revelar difícil. Todavia, nos tempos em que a arquitectura era maioritariamente exercida por não arquitectos, foi graças a ele que se construíram casas onde a cama cabia no quarto de dormir e a cozinha tinha janela. Dêem-lhe graças, também, os que vivem em bairros de “pato bravo”, por terem sol dentro de casa (artº 59, “regra dos 45 graus”). Só por isto o RGEU merecia já ter ganho o Pritzker.
É humilde e trabalhoso o ofício do arquitecto. Arquitectura é, primeiro que tudo, a adequação de um espaço a uma determinada função - dormir, cozinhar, comer, rezar, trabalhar, etc. Quem disser o contrário é porque não sabe do que está a falar. Mas não basta consultar o RGEU nem os mais de mil diplomas legais e regulamentares que hoje, desordenadamente, regem a edificação e a urbanização no nosso país. Nem basta encontrar as melhores soluções para que a vida decorra sem tropeços, isto é, para que os espaços que usamos funcionem. Pede-se ao arquitecto que encontre, também, soluções elegantes. Mas pode um martelo pregar pregos e ter a elegância de um leque? Não é fácil.
Felizmente, a elegância não é o único atributo da arquitectura. E muito menos a beleza, termo que evoca logo o aterrador panteão dos fundadores da Estética: Platão, Aristóteles, Kant, Hegel (nenhum arquitecto os entende, embora alguns pensem que sim). O cavalo é um belo animal, talvez o mais elegante de todos e não vou aqui enumerar as grandes obras de arte que a humanidade lhe dedicou. Mas vejamos: Deus criou também o porco. É feio? Nunca ouvi nenhum cristão queixar-se disso depois de ter comido uma sanduíche de presunto... Com a criação do arquitecto (criação no sentido bíblico e não no de “conjunto de animais de capoeira”) passa-se a mesma coisa: cavalo ou porco, todos nela têm cabimento.
Para contornar o dilema, os arquitectos começaram a falar em paisagem. Está agora na moda como coisa que é preciso “valorizar”, “respeitar”, “salvaguardar”. A paisagem, claro está, é uma coisa para o arquitecto, outra para o agricultor, outra para o biólogo, outra para o economista e outra, ainda, para qualquer adepto de um clube da primeira liga. Ora, uma coisa que pode ser tudo, acaba, fatalmente, por não ser nada. Na Grécia antiga não se falava em paisagem. Tão depressa a “desrespeitavam” pespegando templos nas acrópoles, como a “valorizavam” encaixando anfiteatros nas vertentes. Sobre o anfiteatro de Epidauro, escreveu Pausânias (que nada sabia de paisagem): em “harmonia de proporções e em beleza” não há outro igual. Mas o que é a harmonia de proporções? Peço desculpa, mas isso já não posso explicar. É um dos segredos do ofício.