Se Mozart e Beethoven tivessem sido negros
Será que o grande compositor Beethoven foi afrodescendente? A questão surge de vez em quando, na altura em que se pretende discutir a desigualdade e racismo sistémico na música clássica e a sua história. E, por isso, muito recentemente, no Twitter. A ideia vem ainda dos inícios do século XX e foi ressuscitada e popularizada várias vezes ao longo do último século. Embora tradicionalmente se assuma que os seus pais tenham tido descendência flamenga, há quem sugira que a sua mãe se possa ter envolvido com alguém da península ibérica e com ascendência africana, ou que os tais antecessores flamengos podiam-se ter envolvido com pessoas dessa ascendência (berberes ou mouros), na altura em que a sua região fazia, durante um curto período, parte da monarquia espanhola. As descrições contemporâneas do compositor permitem essa possibilidade.
De qualquer maneira, esta teoria não se baseia nos estudos genealógicos do seu passado, mas apenas em algumas assunções de infidelidade marital. E não se compagina com o facto de nunca ninguém se ter referido a Beethoven como um negro, ou mouro, durante a sua vida. Nessa altura, os vienenses estavam muito conscientes de pessoas com cores de pele diferentes.
Muito bem, então, Beethoven afinal não foi afrodescendente. Mas, se tivesse sido? Ouviriam os seus contemporâneos as suas obras da mesma maneira? Com os mesmos ouvidos? Com a mesma perceção? Ou teria sido a sua herança intelectual e estética soterrada ainda durante a sua vida, tal como foi a do violinista George Bridgetower, “uno mulattico lunattico”, conforme constava na entusiasmada dedicatória original da célebre Sonata Op. 47 de Beethoven. O violinista inglês estreou-a (lendo à primeira vista, sem ensaio!) junto com o compositor, apenas para ver, ainda no mesmo dia, a dedicatória retraída e alterada para o famoso violinista francês Kreutzer, que acabou por nunca a tocar, por a achar demasiado difícil e ininteligível. Bridgetower morreu sozinho e pobre.
Se bem que hoje em dia facilmente se podem encontrar listas de “9 famosos compositores negros que mudaram a história da música clássica”, “19 músicos negros que influenciaram a música clássica”, “10 grandes compositores negros que vale a pena conhecer”, e assim adiante, estas listas não só foram compiladas relativamente recentemente (porventura, já na era da Internet), mas também representam uma percentagem infimamente pequena de talentos musicais de cores de pele “não-brancas” que não constam nas histórias da música ocidental (compiladas, quase exclusivamente, por brancos e para brancos). Ainda pior, historicamente, os brancos estavam sistematicamente a negar a possibilidade de que os negros pudessem ser associados a qualquer tipo de génio artístico. Conforme a grande soprano Jessye Norman, se alguém imagina que o racismo não existe nas esferas rarefeitas da música clássica e ópera, está “lamentavelmente enganado”. Ela até começou a compilar registos das agressões racistas sofridas para um livro, mas abandonou o projeto depois de poucos meses, pelo facto do seu diário já se ter tornado demasiado grosso.
Em que livro menos que recente vamos encontrar as figuras históricas, tais como o pianista e compositor virtuoso negro Don Shirley, um americano imortalizado no filme “Green book” (2018), ou Joseph Bologne, Chevalier de Saint-Georges (nascido em Guadalupe, Caraíbas), violinista, compositor e esgrimista francês ímpar (o filme sobre a sua vida e arte está em vias de preparação)? Bologne, um contemporâneo de Mozart (e louvado igualmente, se não ainda mais, nessa altura), foi admirado por Maria Antonieta, cujo professor era, e foi considerado “o homem mais talentoso da Europa” pelo segundo presidente americano John Adams. A ponto de lhe, ironicamente, ter sido conferida a alcunha “o Mozart negro”. Ou devíamos hoje referir-nos a Mozart como “o Bologne branco”? O próprio Mozart, invejoso, considerava-o o seu arqui-inimigo e talvez se tenha vingado dele retratando-o como o personagem mais negativo da sua ópera “A flauta mágica”, como Monostatos (mouro!). Será que vamos ouvir a música de Mozart de outra maneira pensando que era negro? Será que sequer saberíamos dele se tivesse tido origem africana?
Em 500 orquestras estadunidenses, a percentagem de músicos negros mantém-se por volta de 1.8 por cento e de latinos cerca de 2.5 por cento. Não é, nem nunca foi, uma questão de talento - apenas a de acesso e exposição. Cabe às instituições corrigir o desequilíbrio dos palcos clássicos coloridos em branco. A música clássica, sendo uma forma de arte, considera-se a si superior aos tumultos políticos. Contudo, a sua falta de diversidade representa, inerentemente, uma afirmação política e confirmação da inércia, hoje em dia insustentáveis.