Ser livre é saudável
Convém usar melhor os direitos que nos restam. A liberdade não sobrevive quando se institucionaliza a desconfiança, e por isso depende de um módico de responsabilidade individual e de respeito
Em abril irritei-me com um amigo num passeio higiénico. Culpa, como veremos, absolutamente minha. Dizia-me ele - sem máscara, passeando, relaxado, distante - que “a máscara devia ser obrigatória quando se está assim como nós os dois”.
Fiquei colérico. Mas por que raio não usava ele então máscara? Aquele tipo inteligente, cumpridor, informado - meu amigo! - , estava à espera que o Estado o impedisse de cometer um comportamento que ele próprio achava condenável. E ele próprio não via nada de condenável nisso. O tempo passou. Entretanto, admito: mal estive eu. Foi ele que pressagiou o sentimento pandémico, e foi ele que acertou, logo então, na mosca da identidade nacional.
Veja lá se não reconhece o raciocínio. Cidadão A desloca-se a um bar com balcão virado para a rua, nos intervalos de um rali. Tudo sem máscara, incluindo o cidadão A, que no seu caso se desculpa com a natureza inofensiva da missão de conviver com os amigos numa ilha covid-free, e etc.. Tira uma fotografia, mete numa rede social, comenta: “é uma inconsciência. O Estado devia meter mão nisto” - um nisto onde se incluem, algures, as suas próprias trombas. Quem ficou de fora partilha, concorda, dá eco à preocupação com aquilo: “Olha-me estes selvagens! Então isto é permitido, e ando eu aqui sem me poder enfiar com 100 outras pessoas num barracão?”. O Governo já conhece o chocalho. Quando toca, tem à mão à resposta: “proíba-se”. Proíba-se andar sem máscara na rua. Proíba-se o rali, e os bares, as festas e o álcool. Proíbam-se os transportes colectivos, as esplanadas, os clubes e tudo de onde resulte, derivadamente, a mais pequena acumulação ou lapso de juízo.
Qual é o mal da postura do cidadão A? Não devemos nós ceder nestes prazeres, no mínimo acessórios, no máximo nocivos, para salvar vidas?
Lamento, mas o mal é total.
A diferença entre mim e o cidadão A é que o cidadão A não parece dar muita importância à sua presumível liberdade - o que é notável, se não suspeitosamente traiçoeiro, visto que a despreza precisamente quando a exerce.
Sucede que essa liberdade constitui para mim fundamento absoluto de uma existência com alguma alegria e alguma nobreza - e nobreza é precisamente a palavra.
Para o cidadão A, não é assim. O cidadão A julga, com quase criminoso optimismo, que o seu divórcio da liberdade é provisório, e que a opressão é virtuosa porquanto coincide com um seu desejo de pureza, que só não pratica por vergonha, desleixo ou desencanto.
Sucede que o risco de Covid-19 não é muito diferente de tantos outros, que reflexamente afectam terceiros. O prazer de beber (álcool), o prazer do tabaco, o prazer da locomoção automóvel, e até, de forma mais remota, o prazer de comer são prazeres que se pagam. Que poluem, gastam dinheiro ao contribuinte, desperdiçam recursos médicos e, em última análise, encurtam vidas. Mas não é aceitável que uma sociedade troque os benefícios do SNS pela autonomia e privacidade do cidadão, ou que pretenda regular copiosamente o comportamento dos seus membros, mesmo numa área à superfície tão inócua como a saúde. A obsessão com este mundo sufocante e asséptico da Covid não se distingue, no importante, de outras tendências e más heranças de vigilância e aperto nos costumes.
O cidadão A sabe, inconscientemente, disso. É por isso que, contra a sua própria advertência, não dispensa uma ou outra aglomeração: no seu passeio na serra, no seu cigarro, na sua cerveja, ou até noutros hábitos mais recomendáveis (mas nem por isso mais seguros), como o desporto, uma corrida em grupo, ou um jantar desconfinado entre amigos. Existe, nele, um carinho por fazer o que lhe dá na gana.
A sua mensagem é, por isso, ainda mais perversa, e tão simples quanto aterradora, pois diz que: eu, português, renuncio à minha emancipação e, logo, à responsabilidade pelo risco de Covid-19. É a ti, Estado, que compete impedir, por quaisquer meios (que prontamente aceitarei), o contágio comunitário, dado que me recusarei a fazê-lo por meus métodos e iniciativa; mais me comprometo a pronta e totalmente culpar-te pela minha própria insuficiência.
O que me irritou no meu amigo, e o que me angustia no cidadão A, é este conluio, esta combinação entre uma absoluta fé no Estado e uma total suspeita do nosso semelhante. Como se daí não adviesse, na melhor das hipóteses, um paradoxo, e na pior um flagelo.
Convém usar melhor os direitos que nos restam. A liberdade não sobrevive quando se institucionaliza a desconfiança, e por isso depende de um módico de responsabilidade individual e de respeito. Essa crença básica nos outros é aliás o que nos separa de uma sociedade de proibição e vigilância, e da ditadura sanitária ou de virtude. E é ainda a única coisa que nos impede de viver numa sociedade estruturalmente hipócrita e desigual, onde o convívio e o lazer se vão lentamente convertendo em bens de luxo, reservados aos que têm contactos, afluência e propriedade, e assim escapam aos olhos do Grande Irmão.
É isto um incentivo para abandonar a máscara? Pelo contrário. É um incentivo para a usar, e cumprir à risca as recomendações das Autoridades de Saúde. Para se distanciar, lavar as mãos, preservar-se, mesmo diante do gozo e do apoucamento, mesmo em refúgios ou locais tidos por seguros. Mas que o façamos com a dignidade da vontade, e não sob a ameaça abjecta uma proibição reforçada pelo medo. Proteja-se a saúde, mas sem ceder à sombra totalitária de uma sociedade de fim único, insensível à miséria, à pobreza e à insegurança que espreitam sobre os cordões sanitários. Porquê pedir para todos a força, se basta a cada um ter juízo?
Querer ser livre é saudável. E recomenda-se.