Uma autonomia sem trela
Precisamos de uma autonomia que não confunda a administração pública com a militância num partido.
No mês em que se comemora a conquista da Autonomia, assistimos, nos dias 22 e 23, ao debate e votação do Orçamento Suplementar proposto pelo Governo Regional para colmatar as necessidades imprevistas causadas pela pandemia. Uma vez mais, este governo que se autodeclara dono da autonomia, deixou de fora as autarquias, ainda que estas assumam demasiadas vezes o que é da competência do Governo Regional.
Por muito que os responsáveis o neguem, é a confirmação de uma tática político-partidária que tem os olhos postos nas próximas eleições autárquicas, que serão difíceis para um PSD-Madeira que, mais do que uma família, quer ser uma dinastia, e procura desesperadamente usar o tempo e os meios que lhe restam para tentar recuperar o controlo perdido.
Isto é uma evidência: basta ver a forma como o Governo Regional tem tratado de forma diferente os municípios e freguesias onde forma escolhidos outros partidos. Neste momento, o Governo (que só assume o que corre bem, nega problemas e alija responsabilidades), apenas mantém contratos-programa com algumas autarquias da Região. São onze, mas apenas algumas são «dignas» de cumprimentar com o que o Vice-Presidente julga ser o seu chapéu - mas que é, na verdade, dinheiro dos e das contribuintes que são também munícipes.
Mais uma vez, uma questão de tática: umas porque imaginam serem ainda bastiões do seu feudo, outras porque se quer colar à «independência» (caso da Ribeira Brava). Parafraseando o comentário do Presidente do PSD-Madeira e Presidente do Governo Regional, «Vamos apoiar quem?»
Muita tática político-partidária, nenhuma estratégia ou preocupação com as pessoas. Isto porque, quem faz obra com dinheiro vindo da União Europeia, com dinheiro vindo do Estado Central e com dinheiro oriundo dos impostos pagos pelos contribuintes da Madeira, considera que descentralizar e contratar com as autarquias é deixá-las cumprimentar com o chapéu alheio.
Mas não tendo sido suficiente a falta de cooperação institucional entre Governo Regional e Autarquias para fazer vergar a população que não confiou os seus destinos à «família», a tática passa por esvaziar as competências das juntas de freguesia dispondo do dinheiro transferido pela Segurança Social (nacional) para subsidiar Casas do Povo que oferecem viagens e subsídios, e deixam à mão canetas do partido para o preenchimento dos respetivos formulários. Este Governo que se diz autonómico, entrega dinheiro, a Casas do Povo cujos corpos sociais não foram democraticamente eleitos por quem paga impostos e, por isso, as está a financiar.
Entre a democracia transparente e o aparelhismo descarado, opta-se pelo aparelhismo, pela opacidade, pela distribuição dos bens públicos de forma discricionária e, principalmente, sem fiscalização por entidades independentes. Mas isto ainda não é suficiente. E por isso, ao longo dos últimos três anos, têm tentado estrangular os municípios que não são da sua quota, instrumentalizando as Assembleias Municipais e de Freguesia. A orientação é clara: chumbar orçamentos, apreciar negativamente prestações de contas, não viabilizar empréstimos para obras essenciais, propor iniciativas cujo intuito se resume a esvaziar os cofres municipais. Vale até a tentativa de viabilizar ilegalidades que ultrapassam as competências das Assembleias Municipais em reuniões extraordinárias que representam mais despesa. Assim vai a política de terra queimada.
Mas voltemos ao orçamento suplementar aprovado pela maioria. Dos 287,7 milhões de euros a mais, não há um euro que seja canalizado para celebrar contratos-programa com as autarquias, como se os orçamentos autárquicos não tivessem também sido afetados pelo aumento da despesa e diminuição da receita em consequência da pandemia. E nem passou pela cabeça deste executivo ressarcir as autarquias dos valores que estas redirecionaram e avançaram para suprir necessidades que eram da sua exclusiva responsabilidade, como é o caso da aquisição de equipamento digital para alunos e alunas de 1.º ciclo.
Ciente dessa omissão, que até poderia ser um lapso semelhante ao que quase passou a tutela da Invest Madeira da Secretaria da Economia para a Vice-Presidência, o PS-Madeira propôs a celebração de contratos-programa com todas as autarquias, com critérios que assegurem os princípios da Igualdade e da Transparência. Propôs a resolução de uma reivindicação que, num passado recente foi uma exigência dos agora Presidente e Vice-Presidente quando ainda eram autarcas: reembolsar os municípios da participação variável de 5% no IRS referentes aos anos de 2009 e 2010. E propôs a regulamentação necessária para que a participação dos municípios das Regiões Autónomas na receita do IVA cobrado nos setores do alojamento, restauração, comunicações, eletricidade, água e gás seja finalmente uma realidade, como decorre da lei. Estas propostas foram inviabilizadas pela maioria que sustenta o Governo Regional. É este o uso que o Governo Regional, o PSD (e este CDS colaboracionista) têm feito da autonomia. Há umas semanas o Dr. João Cunha e Silva, a propósito do estatuto político-administrativo da Região, afirmou que «ser autonomista não pode depender do partido que está no Governo Central». Concordo em absoluto, mas vou mais longe: ser autonomista não pode depender do partido que está na Câmara Municipal ou que suporta o Governo Regional.
No seu sentido político e ético, autonomia remete para autodeterminação, autogestão. Significa exercer responsavelmente o poder que nos é conferido por um estatuto político-administrativo autónomo. Isto implica negociar e cooperar. Exige que se estabeleça pontes e se una esforços com quem vive problemas semelhantes. Requer consideração pela legitimidade democrática dos municípios e fortalecimento da sua autonomia. Significa respeitar as escolhas dos e das munícipes e estabelecer parcerias para melhorar o bem comum.
Implica uma administração criteriosa do dinheiro das pessoas que pagam impostos na Madeira (ou no Continente e que nos chega através das transferências). Implica assumir que se representa todas as pessoas da Região. Implica prestar contas a todos os residentes, sem exceção, sem este constante discurso de que há cidadãos de primeira e de segunda, consoante o local de origem.
Precisamos de uma autonomia que não confunda a administração pública com a militância num partido. Uma autonomia que não navegue à vista, ao sabor dos humores e interesses dos partidos que, circunstancialmente, governam a Região. Uma autonomia potenciadora de liberdade, suficientemente responsável e madura para exigir solidariedade, mas que seja também ela solidária.
É preciso refundar a autonomia, uma autonomia que esteja, de facto, ao serviço do Bem Comum da Região.