Meditação
Vivemos tempos estranhos, e não é só por causa do vírus. A estranheza já vinha de longe, crescendo longamente como um tumor sem pressa de rebentar no coração da vida. O homem, um estranho para si próprio; as sociedades, irreconhecíveis na sua desumanidade. Depois das marchas triunfais para nenhures, herdámos o impasse de um mundo feito beco sem saída. E agora, pior que nunca. Não há barco nem avião para restos de paraíso. Toda uma azáfama das pequenas vitórias efémeras e disruptivas é o que nos legaram como propósito de vida: o “caldo de cultura” certo para a emergência viral, feita pandemia do tempo e da vida que não volta.
Tempos estranhos que nos marcam pela forma como agora vivemos o tempo, ora retraídos pela incerteza e pelo medo, ora agitados e sem tempo para nada, e todavia sufocados pelo tédio que nos empurra para vivências alienadas, em busca de... matar o tempo.
Somos sempre filhos de um tempo, historicamente; mas criamos o nosso próprio tempo e acreditamos dominá-lo, pessoalmente.
Vivemos tempos estranhos, mas quem é que quer pensar nisso? A lentidão, a pausa, a meditação, filhas de um tempo que passou, bem podem esperar sentadas...
E no entanto: tempo e espaço, os dois “a priori” kantianos, são dimensões do nosso ser e estar, configurando tanto a pura subjetividade individual como a vasta exterioridade que de todos os lados nos abraça. Tempo e espaço, não há como fugir-lhes: esta dialética insana baliza-nos a vida inteira, a interioridade a construir-se como consciência de si e do mundo, a exterioridade qual campo material de todas as possibilidades. Por isso, no afã de realização do humano, até desenvolvemos múltiplas formas de domínio do espaço, reconfigurámos processos civilizacionais, criámos a técnica e a globalização. E o espaço, sempre indomável à nossa frente; transformando-o, fomos transformados. Espaço que julgávamos poder absorver temporalmente numa existência preenchida e quase feliz. E no entanto, inexorável, o tempo corre sempre adiante, a finitude e a morte modelam-nos do princípio ao fim da vida, uma cicatriz indelével endurece(-nos) na corrida dos dias, linhas que pareciam abertas afinal são círculos que uma vez e outra se vão fechando: espaço que pauta o tempo, tempo que desdobra o espaço - e a realidade, sempre maior que nós.
Vivemos tempos estranhos, mas algo permanece. O humano traz consigo, inevitável, um mistério maior: indagar o sentido da própria humanidade é a nossa busca permanente. Podemos fazer como Sísifo, carregar a pedra uma vez e outra e outra até ao cimo da encosta, porque sim, olhando o absurdo nos olhos; ou podemos viver na entrega confiante e confiada a um Sentido, sonhando uma plenitude de antes e depois de nós, por certo promessa e pura graça, dádiva sem porquê, a pergunta com a resposta sempre em aberto, restando a confiança na vida que excede a vida, sempre maior: por vezes, quando percebemos já é tarde, pois o instante é a medida do tempo, e tudo flui e se esgota sem remissão. Queríamos dominar o espaço e ter todo o tempo do mundo. Nada feito. Só a vida resiste, antes e depois de nós, por isso mais plena e confiável que o absurdo quotidiano. Confiar, resistir, lutar, e ainda esperar; mas a esperança humana é sempre uma esperança crucificada.
Vivemos tempos estranhos, e o vírus não ajuda nada.