Vigiar para punir
Ironicamente (ou talvez nem tanto), a direita que fala dos bens da PIDE e de Salazar ficou aterrorizada com esta ideia
No início deste mês, todos testemunhamos uma nova polémica que desapareceu do debate público tão abruptamente como apareceu – a monitorização governamental das nossas atividades online, supostamente apenas daquelas que dizem respeito ao “discurso de ódio”.
A iniciativa do Governo passa pela construção de um barómetro mensal que pretende acompanhar e sinalizar sites em que este prática ocorra de modo a, segundo a ministra Mariana Vieira da Silva, perceber a forma como o “discurso do ódio” evolui e identificar os seus autores. Tudo isto para que, no fim, se possam criar novas políticas para atacar o fenómeno.
Claro que, num mundo perfeito e livre de corrupção, esta parece ser uma iniciativa fenomenal e promissora, mas, como todos sabemos, a corrupção é um dos males que mais assolam o terreno português (não fosse o crime mais aceitável em Portugal o do tráfico de influências, vulgo, o uso de “cunhas”) pelo que parece estarmos em presença de uma “árvore dos frutos envenenados”.
Ironicamente (ou talvez nem tanto), a direita que fala dos bens da PIDE e de Salazar ficou aterrorizada com esta ideia, apesar de o próprio líder da extrema-direita portuguesa ter sempre expressado uma vontade similar no sentido do controlo da expressão online, e a esquerda (a liberal, não a conservadora) deu pulos de alegria, embora tipicamente, e não só em Portugal, ser uma crítica bastante vocal do Estado de Surveillance (o Estado que monitoriza cada passo que damos).
Infelizmente, as posições típicas dos defensores desta medida, a meu ver, extrema, invasiva e incapaz de criar resultados positivos a longo prazo no combate à discriminação em Portugal, são as de que “o discurso de ódio já era crime muito antes disto” e ainda “se não cometes o crime, não tens nada a temer”. Vamos, pois, desconstruir estes dois argumentos.
Primeiro, tecnicamente, o crime “discurso de ódio” não existe, sendo apenas evocado através do artigo 240º do Código Penal Português intitulado de “Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”. O problema do “discurso de ódio” não ser algo verdadeiramente tipificado no direito penal é o de permitir um vasto conjunto de interpretações por parte daqueles que irão monitorizar a comunicação online, o que poderá originar que o mínimo comentário crítico seja assumido como uma possível sinalização neste barómetro mensal, pelo menos por aquilo que até agora foi revelado. Àqueles mais céticos em relação a este argumento, relembro apenas que em alguns países já começaram a surgir iniciativas para classificar qualquer acusação de fascismo como “discurso de ódio”.
Em relação ao segundo argumento, o de que “quem não deve não teme”, trata-se de uma falácia na medida em que seremos vigiados, independentemente de prevaricarmos ou não. Pensemos assim: somos cidadãos que nunca cometemos um crime. Quer isso dizer que não nos importaríamos se a polícia nos viesse a casa vasculhar os nossos bens ou, pior, observar-nos enquanto fazemos as nossas ativiades do dia-a-dia? Porque a verdade é que para encontrar o não legal é preciso analisar o legal. Acho que a resposta é um óbvio “não”, mas nos tempos que correm é sempre uma incerteza. Que fique aqui em nota que no Reino Unido já ocorrem visitas da polícia a casa de civis, devido a comentários mais polémicos que estes fizeram.
A vigilância online do Estado é uma iniciativa problemática e acarretará consigo consequências graves que afetarão tanto os culpados pelo “discurso de ódio” como aqueles inocentes que nada fizeram ou o fizeram num passado distante, sendo importante relevar que a cultura do cancelamento online (destruição da carreira de uma pessoa por uma “multidão digital” por algo que fez no passado ser incompatível com os valores atuais porque nos regemos) está ao rubro em 2020.
Por este caminho, será de esperar que, no futuro, no contratamento de profissionais, surja algo como a necessidade de nunca se ter sido sinalizado por “discurso de ódio” ou discurso problemático, porque, como já vimos na história de regimes autoritários, é nesse sentido que este tipo de inciativas cresce. Lembremo-nos também, que este barómetro continuará a existir independentemente dos governos que sucedam o atual.
A triste verdade é, em suma, que a discriminação sustentada em qualquer característica não se aniquila com iniciativas destas. Tal como a evolução das espécies — e nisto estamos perante uma questão de evolução da espécie —, o fim da discriminação implica um processo que levará um longo espaço de tempo e que, por isso, pouco dependerá de monitorizações, mas sim de uma efetiva formação para a cidadania.