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Crónicas

Os invisíveis

E a tia Conceição nunca mais foi a mesma, como se a loucura tivesse começado nesse momento, antes até de entrar nessa dimensão dos invisíveis, dos velhos a quem custa andar ou perceber onde estão.

Não sei precisar quando aconteceu, quando passaram a ser apenas velhas, mas lembro-me de antes, do tempo em que as minhas duas tias solteiras tinham importância e o carinho dos vizinhos. A Teresinha e a Conceiçãozinha, assim conhecidas entre o Campo do Marítimo e o Jamboto, viveram sempre juntas e, embora fossem diferentes, mereciam o respeito das herdeiras sem filhos e de um suposto pé de meia que, na verdade, nunca existiu.

O quinhão de terras que lhes coube e a ideia de que as mulheres sem marido e sem filhos tendem a acumular dinheiro debaixo do colchão construiu a fama daquelas duas senhoras de meia idade com quem cresci. Elas levavam-me nas excursões, nas vezes que iam ao médico ou ver a procissão, mas eu sempre soube que não eram ricas, mesmo quando me compravam gelados e livros.

A tia Conceição era empregada de quartos no Hotel Girassol; a tia Teresa trabalhava no Colégio da Apresentação. A nossa herança de terras não pagava contas e as minhas tias não tinham estudos para ter um emprego com salários mais vistosos. E, cansadas de viver naquela frugalidade anterior à revolução, decidiram aproveitar o ordenado para fazer o que não lhes era permitido antes, quando eram novas e as circunstâncias as mantinham numa espécie de colete de forças.

A tia Conceição não passava um Verão sem fazer as malas para visitar os amigos do Porto e regressar ao fim de 15 dias com dois rolos de fotografias – quase todas tremidas – e conjuntos de toalhas, uns tecidos para fazer vestidos e uns bibelôs de gosto duvidoso. E, quando não ia de férias, fazia-nos as vontades todas: comprava livros, pagava passeios, dava dinheiro para comer bolos. A casa enchia-se de novidades como a tostadeira onde, ao domingo à tarde, a tia Teresa fazia aquelas tostas de queijo.

Tímida demais para se revelar a estranhos, a tia Teresa gostava de ficar por casa, de tratar do jardim, cuidar dos cães e planear a fazenda. Não havia Verão em que não encomendasse trabalho ao meu pai: um muro, uma vedação e, uma vez, até a renovação completa da casa. Aos sobrinhos – e sobretudo ao meu irmão – dedicava um amor incondicional, um carinho que sempre me pareceu próprio dos espíritos mais reservados. Era a tia, a nossa tia e enchia-nos de doces, aqueles chocolates que nos curavam de tudo.

A morte levou-a aos 71, de mansinho numa noite de Março, tão suave como viveu. E a tia Conceição nunca mais foi a mesma, como se a loucura tivesse começado nesse momento, antes até de entrar nessa dimensão dos invisíveis, dos velhos a quem custa andar ou perceber onde estão. É aí, nesse lugar, que está a minha tia Conceição.

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