Quando a pobreza se junta ao medo
A fratura social expõe, de facto, as vítimas mais atingidas pela pandemia. Os mais velhos, os mais doentes, os mais pobres
Sinto que há algum desnorte na acção do Governo. O desconfinamento foi somando equívocos com o passar dos dias. Primeiro foi a ordem de saída, repetida à exaustão, agora é a ordem para recolhimento sem a conveniente e devida explicação, pelo meio tentou-se desviar as atenções dos pecados próprios para uma suposta irresponsabilidade dos jovens. É preciso acertar o passo rapidamente antes que chegue o caos.
Não é por acaso que as manchetes não dizem que operários da construção civil, empregadas da limpeza ou trabalhadores das cadeias de abastecimento, transportes e distribuição recusam trabalhar sem condições adequadas à protecção da sua saúde. Muito invisíveis no espaço mediático, estes trabalhadores continuam a desempenhar funções essenciais fossem quais fossem as condições, porque qualquer perda de rendimento era insuportável. Saíram e voltaram a casa com medo de infectar e de ser infectados. Foram os primeiros a saber que os transportes iam cheios demais, que não tinham equipamentos de protecção adequados, mas não puderam dar-se ao luxo de parar. Fizeram chegar denúncias a sindicatos, estruturas partidárias, associativas. Com o passar do tempo foi patente que a pandemia na Área Metropolitana de Lisboa divergia do resto de país e começou a olhar-se a sério para o que os números traduziam.
Os passos atrás que o Governo anunciou agora mostram a dificuldade de responder à situação. Por exemplo: pede um dever cívico de recolhimento a uma população que nunca pode parar e que precisa de se deslocar de concelho para trabalhar. Outro exemplo: limita ajuntamentos a mais de 5 pessoas, mas mantém o problema dos transportes públicos apinhados, onde dezenas de pessoas se amontoam. Tudo isto roça o ridículo.
De facto, a escassez de transportes põe toda a comunidade em risco; se ela resultar de um défice de exploração rigorosamente documentado e incomportável para estas empresas, o Estado terá de equacionar, pelo menos, novos apoios.
Combater a precaridade habitacional e residencial, nos transportes e também no trabalho terá que ser um dos principais objectivos do Governo. Os malefícios da precaridade laboral são bem conhecidos. Os vínculos precários, na multiplicidade das suas normas contractuais, criam vidas de incerteza, baixos salários, carreiras contributivas com reformas de miséria e apoios sociais que faltam quando deles mais se precisa. A precaridade estende-se a todo o tecido social, e até económico, mesmo na ausência de emergências sanitárias. Com a pandemia tudo piorou. Desde logo, nas profissões que pararam, como a cultura, mas também nos trabalhadores mais expostos ao risco sanitário, da carrinha da empresa onde se amontoam até ao estaleiro de construção onde os procedimentos pouco ou nada mudaram.
A fratura social expõe, de facto, as vítimas mais atingidas pela pandemia. Os mais velhos, os mais doentes, os mais pobres. A exploração destes últimos por um sistema gerador de desigualdades não é de agora. Mas a compreensão de que destruir os mecanismos que consolidam a subalternidade é a única forma de protegermos toda a comunidade, pode estar ao nosso alcance.
De facto, de acordo com o perfil traçado pelos especialistas, a maioria das principais contaminações decorre maioritariamente num contexto de coabitação, ou seja, em casa, por pessoas que vão trabalhar usando transportes públicos.
Um perfil que torna cristalino o quadro das desigualdades, de pobreza e da má qualidade de vida, que existe nas zonas periféricas da capital, com a degradação do padrão das habitações e com os graves constrangimentos crónicos dos transportes públicos. Só que estes dois problemas já estavam lá antes, daí que seja estranho não ter havido a sensibilidade política e social no Governo e nas autoridades para a atenção necessária em relação a estas zonas mais expostas da pandemia.
Neste sentido se pronunciou, nas suas primeiras declarações, D. José Ornelas, Bispo de Setúbal e novo Presidente também da Conferência Episcopal Portuguesa para avisar que o mundo pós-Covid-19 não pode voltar ao que era. “Se alguma coisa a pandemia nos ensinou é que a miséria custa muito caro. Nós não nos podemos dar ao luxo de ter miséria entre nós, considerou. Em Setúbal, D. José Ornelas tem acompanhado os problemas sociais da diocese, condenando repetidamente o “racismo, a injustiça e a exclusão” que considera não terem lugar na Igreja Católica.
A Assembleia Plenária da CEP, que decorreu em Fátima, e que elegeu D. José Ornelas elaborou um documento que é um “contributo” para o diálogo social a partir da emergência que se vive por causa da pandemia Covid-19. “Temos de construir um mundo que não seja totalmente igual, que utilize todas as riquezas que nós temos, mas também seja capaz de sonhar mundos novos e que aprendamos dos esforços de todos que se fizeram neste tempo para construir uma humanidade melhor para todos” sublinhou. “Os próximos tempos não vão ser fáceis e precisamos da convergência de toda a gente nesta sociedade, de todos os quadrantes políticos e de todos os sectores da sociedade para superarmos esta crise e construirmos algo de mais significativo, porque os nossos jovens precisam disso” acrescentou o novo presidente da CEP. Uma reflexão que se impõe após o fim da pandemia.