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Crónicas

Uma autonomia sem donos

A autonomia tem tido costas largas para aguentar com os mandos e desmandos de um partido que acha que a Região é gerida em regime de colonia

Assinalamos, no passado dia 1 de julho, o Dia da Região e das Comunidades Madeirenses, a comemoração da conquista da Autonomia para as Regiões Autónomas; assistimos também, no dia 9 de julho, ao debate do Estado da Região.

Ouvi atentamente os discursos e intervenções proferidas nesses dias. Foram fiéis à narrativa mitológica das últimas décadas, um tipo de pensamento sobre a autonomia que me causa urticária, porque temos sentido na pele as suas consequências.

Ao fim de 44 anos, o que resta das comemorações do dia da Região é a certeza de que continuamos refém da vontade de um partido político que se afirma que «mais do que um partido, uma família». Como tal, usa a autonomia, usa a Região, põe e dispõe das verbas resultantes dos impostos pagos na Região e dos impostos pagos no Continente transferidos para a Região, para perpetuar os seus interesses partidários. E por isso, a defesa da autonomia não passa de uma gritaria permanente quando o Governo da República não é da sua cor, e que, em contrapartida, é completamente adormecida quando o Governo da República é liderado pelo PSD – lembremo-nos de quem propôs e aprovou a Lei das Finanças Regionais no seu formato atual e que agora a considera lesiva para a Região.

A autonomia tem tido costas largas para aguentar com os mandos e desmandos de um partido que acha que a Região é gerida em regime de colonia. Para criar dívida, entretanto perdoada, para voltar a criar mais dívida, alguma dela oculta, e bem sabemos quanto ainda nos pesa. O velho princípio do «para os nossos amigos tudo, para os nossos inimigos nada, para os restantes cumpra-se a lei» continua a imperar e, nesta legislatura, a falta de pudor tem crescido em vez de diminuir. Por isso, há os nossos, a família partidária, a clientela e a teia de influência que é preciso manter a todo o custo, há os quase nossos, isto é, o partido-muleta, que serviu de boleia e que se tem de tolerar por mais algum tempo, e depois há o resto. E o resto ou é para abater (os outros partidos) ou é paisagem a manter bucólica e mansa (a Região).

Veja-se a forma como se usou os nossos recursos para fazer campanha para as legislativas regionais, com inaugurações de obras inacabadas a quatro dias das eleições, com lanches e jantares pré-eleitorais na Quinta Vigia, com distribuição de dinheiro, 100 euros aqui, 50 euros ali, com aprovação suplementos salariais, como foi o caso do suplemento salarial aos assistentes operacionais do Serviço Regional de saúde aprovado quatro dias antes das eleições, com garantias de começar a ser pago logo em outubro, mas cuja obrigatoriedade de cumprimento foi chumbada no mês passado pelo PSD/CDS.

Os resultados das eleições regionais demonstram como as pessoas da Região estão cansadas desta instrumentalização dos nossos recursos para manter os interesses daquela «família». E o início de uma nova legislatura, em minoria, poderia ter significado uma outra forma de gerir a coisa pública.

Não tivesse acontecido a traição do CDS à sua história e aos seus eleitores e eleitoras, e o panorama da política regional seria hoje muito diferente. Poderia ter optado por obrigar o PSD a negociar diploma a diploma, cêntimo a cêntimo, mas a vertigem dos 30 dinheiros foi mais forte e, por isso, optou por vender a Região ao partido de sempre por mais quatro anos. Por isso, os resultados das últimas eleições não constituíram um momento de reflexão e de alteração da forma de usar o dinheiro público. A manutenção do poder tornou-se uma obsessão, e já nem se finge que os recursos públicos são para manter o poder do partido e da sua clientela. Veja-se o que se continua a fazer em relação a sorvedouros de dinheiro público. Só este ano, já foram meio milhão para a Madeira Parques e 28,7 milhões para as Sociedades de Desenvolvimento. Em ambos os casos, maioritariamente para cobertura de prejuízos e manutenção dos seus «quadros».

Veja-se como têm sido conduzidos os dossiês que custam mais dinheiro – o do Ferry e o do novo Hospital – ambos com concursos com mesmo desfecho: sem proponentes e um consequente aumento dos custos. Por exemplo, a alteração do concurso da linha do Ferry resultou numa adjudicação direta. Esperemos pelos próximos capítulos da longa saga do novo Hospital, anunciado já há 20 anos.

A falta de transparência nos critérios adotados para distribuição dos nossos recursos – os que temos e os que nos chegam a partir do Governo da República – continua, mesmo em tempo de pandemia. Cria-se dessa forma uma cultura de medo, de receio em expressar livremente o que se pensa e como se pensa. Procura-se controlar a todo o custo a capacidade de reivindicação a inúmeras associações e organizações que assumem uma boa parte daquelas que deveriam ser competências públicas. Também no que diz respeito à cultura, perpetua-se um ambiente que mantém os agentes culturais reféns de uma distribuição de recursos lenta e muito pouco transparente. Na verdade, a conquista de um estatuto político-administrativo autónomo tem sido usada para diminuir a autonomia e a liberdade de vários setores da sociedade madeirense.

O tempo da maioridade da autonomia da Região já passou há muito. Poderíamos até dizer que a autonomia madeirense atingiu a meia-idade, não fosse o facto de as palavras, os atos e as omissões demonstrarem que, afinal, ainda não. Recorrendo às palavras do deputado Jaime Ramos no debate sobre o Estado da Região, «Não basta usar o nome da autonomia para ser autonomista. É preciso muito mais do que isso.» De facto, é preciso começar por reconhecer que o governo regional não é dono do dinheiro que gere. O dinheiro é dos contribuintes da Madeira. É das contribuintes do Continente e da Europa, através das verbas transferidas para a Região. É preciso ter pudor em usar o dinheiro de todos e todas nós, chamá-lo de seu e usá-lo para perpetuar os mesmos no poder. Este governo e este partido «limita-nos. Procura sujeitar-nos à dependência e submissão» usando o nosso dinheiro. Mas a autonomia não é propriedade de um partido. Muito menos a Região.

Quarenta e quatro anos de autonomia e ainda não saímos desta confusão entre o que é de um partido e o que é da Região. Mas que não haja dúvidas: a defesa intransigente dos interesses do PSD não é a defesa intransigente da autonomia e nem tão pouco é a defesa intransigente da Madeira. Por mais anos que nos queiram passar esta ideia, continua a não ser verdade. E cada vez mais sabemos que não tem de ser assim.

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