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Crónicas

“Crematório”

Achei sintomático que o comentador do Jornal da Noite (domingo) tenha falado de “crematório político” para sugerir o que poderia advir se o governo desencadeasse uma auditoria à gestão dos últimos anos da antiga “transportadora aérea nacional”, agora que – como antigamente se dizia de Angola – “a TAP é nossa”: pobre fortuna, fortuna de pobre!

O uso da metáfora incineradora trouxe-me a evocação de “Crematório”, notável romance de Rafael Chirbes (1949-2015) – cronista da desordem e da desilusão, como titulava o Ípsilon na altura da sua morte –, que compôs um retrato desapiedado da crise económica e dos escombros sociais advenientes: num labirinto de memórias e personagens à volta do amigo morto, vamos tendo acesso aos tráficos da crise e da corrupção que, como um vírus, infeta toda uma sociedade. Na sua grande elaboração literária, o romance tem um enorme vigor crítico e metafórico: descrevendo o pesadelo urbanístico da costa levantina espanhola, o que se evidencia é a influência corruptora, tanto da paisagem como do carácter, da perversão humana. Quando o dinheiro é o único sol, ninguém sai incólume: numa sociedade ressequida de valores e de beleza, parece que a inocência foi, há muito tempo, um sonho vão.

No Portugal dos anos ante e pós troika, um “crematório” semelhante foi posto em andamento por pequenos pais da pátria que tomaram conta da nação, mas sem dimensão ética nem política para as nobres exigências da “res publica”. Os apetites das “famiglias” (sem sotaque siciliano) instaladas e a instalar na orla do Estado, mais as hordas de novo-riquismo predador e exibicionista nos sectores estratégicos, puseram a arder durante anos – primeiro no lume brando da corrupção, depois em crepitosa fogueira já sem vergonha – a riqueza, os valores, a paisagem, a economia. Viram-se tentativas de arrepiar caminho e devolver a política à dignidade democrática, mas a perversidade instalada nos partidos do poder, à mistura com a ganância sem escrúpulos que dominava o ar do tempo, levaram ao progressivo empobrecimento do Estado e dos portugueses, gemendo e chorando sob a calamidade generalizada das dívidas soberanas. Debaixo do olho cúpido dos agiotas dos “fundos” (que diferiram o colapso total), lá fomos saltando do lume para a frigideira, na programada ilusão de vidas suficientemente felizes e na mitigada esperança de novos ciclos eleitorais... Mas a verdade é que a incineradora da corrupção continuava a crepitar – e a democracia em desespero: a pobreza como modo de vida, a justiça em parte incerta.

Agora, com a suposta nacionalização, de facto desembarcámos no “hub” de mais uma dívida bilionária. Já tínhamos experiência disso, valha a verdade: há anos que o Estado usa o escasso dinheiro disponível para cobrir os “riscos sistémicos” dos bancos, ou para manter desfraldadas “bandeiras estratégicas” (com muita rapinaria entretanto, diga-se). A TAP vai continuar a voar, lá isso vai, só não se sabe por quanto tempo e milhares de milhões depois. E assim se queima o rendimento nacional, que devia ser aplicado na reabilitação de uma Educação cambada (que mantém o país numa esconsa periferia da Europa), ou numa Saúde desgraçada e sem remédio (que deixa morrer os velhos e acode pouco aos que nela ainda esperam). Essas, sim, deveriam ser as bandeiras nacionais prioritárias, tal como a Ciência ou a Segurança.

Mas, qual quê: a incineradora continua o seu trabalho, de vez em quando saltam das brasas os antonoaldos competentíssimos, os mexias da tribo dos ceos exemplares, os socráticos luminares da velha choldra lusitana.

Como já escrevia Sophia dois anos depois do 25 de Abril: “Cantaremos o desencontro: /A vida errada num país errado/Novos ratos mostram a avidez antiga”.

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