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Joelho no chão

A partida do Padre Mário Tavares impõe uma merecida referência, pelo legado de cidadania

1. Inquieta, assusta e revolta qualquer um. Sufocámos todos um puco, morremos todos um pouco, os que estarrecidos assistiram ao assassinato de George Floyd. Uma execução lenta – oito minutos! - cruel, arbitrária, gratuita, deixando antever uma atitude de completo desprezo pelo ser humano, de alguém que parece colocar-se acima da lei que tem por dever fazer respeitar, respaldado talvez num inaceitável estatuto de impunidade. Infelizmente, episódios de racismo e brutalidade policial verificam-se um pouco por todo o lado no mundo, sendo abusivo considerá-los atavismos exclusivos da sociedade americana. Porque preconceitos raciais, estereótipos culturais, representações sociais fazem parte da cultura profunda do inconsciente coletivo da humanidade e alimentam imaginários, discursos de ódio contra determinados grupos étnicos, o fermento de populismos ao serviço de tantas liturgias de poder.... E não será só na América que falta fazer mais educação para a tolerância, para o respeito pelo outro, o passo indispensável à paz.

Curiosamente, para o atual presidente deste país, um exemplo de democracia para o mundo, o exercício legítimo do direito à indignação, à manifestação e ao protesto de ordeiros cidadãos é visto como ameaça à lei e à ordem pública e, ao invés de condenar o ato bárbaro das forças que deveriam ser de segurança dos cidadãos, manda a polícia correr com manifestantes em legítima indignação contra o assassinato do cidadão negro, para poder atravessar a mesma rua, rodeado de elementos do seu staff. Cena patética! O presidente americano com a Bíblia na mão à porta de uma igreja, depois de fazer dispersar a manifestação, remete-nos para qualquer coisa de cinematográfico, de “Apocalipse Now” de categoria inferior. Bob Dylan, no poema (With God on Our Side), fala desta cultura americana – e não só – das inúmeras guerras e consequentes atrocidades que os decisores políticos provocam, sempre em nome de Deus...

De um responsável político espera-se solidariedade para com os injustiçados, aproximação social em situações de conflito e suficiente visão universalista da História, capaz de estimular a paz e estabilidade das populações. Salvo se por meros cálculos políticos eleitorais entender como benéfico explorar climas de tensão, capitalizar a seu favor atos de vandalismo e cavalgar sentimentos de insegurança, arvorando-se em paladino da lei e da ordem. Não é novo na História e não é de estranhar a um presidente que começou o seu mandato invocando inimigos externos à grandeza da América, todos criminosos, protegendo a sua ignorância e insegurança atrás de muros, gradeamentos e barreiras. O exibir a Bíblia não o isenta de pecados.

2. Concorda-se com a indignação do Presidente do Governo Regional, pré-anunciado candidato à Presidência da República, em artigo de opinião no jornal Expresso de 30 de maio. Numa região afetada quase a 100% na sua principal atividade económica pela pandemia, e quando é tão incerto o evoluir da situação sanitária global, cabe sem dúvida ao Estado uma atenção e intervenção especiais e proporcionais, de modo a acorrer a situações de emergência das populações insulares. E sem os clássicos contenciosos quixotescos contra Lisboa. Até porque já houve anteriores exemplos de intervenção do governo central, por exemplo no perdão de dívidas regionais, generosas leis de meios... Mas tem sobretudo razão, quando se refere a atos de “propaganda constante”, “frenesim festivo”, de quem parece querer apenas “a preservação do poder”. Ou ainda quando diz que “o Estado se transformou num aparelho ao serviço do partido do Governo”. Coisas que por cá nunca se verificaram. Nunca tivemos obras de calendário, sequências de lautas inaugurações até em épocas eleitorais, nem nunca se viu nomeações em procissão, de elementos do partido para gabinetes governativos. Quanto a perpetuar-se no poder, bem, todos sabemos da situação política regional, há mais de 40 anos, não é verdade? É assim a democracia...

3. A partida do Padre Mário Tavares impõe uma merecida referência, pelo legado de cidadania, exemplo de coragem, intervenção cívica e participação na construção e defesa da democracia, que deixa nesta Região. Afirmou firmemente as suas discordâncias políticas, quando não era fácil sair do consenso social e político de governos de sucessivas e sufocantes maiorias absolutas, e num tempo em que os legítimos direitos da oposição nem sempre foram devidamente respeitados. A construção da cultura democrática nesta terra deve-lhe um justo tributo.

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