No maior cemitério da América Latina, choram-se mortos até de noite
A metrópole de São Paulo já contabilizou, até Maio, mais 10 mil mortes face aos primeiros cinco meses do ano passado
A covid-19 mudou a vida no maior cemitério da América Latina, em São Paulo, e hoje há filas de espera das famílias para cumprir, mesmo que seja à noite, as cerimónias fúnebres.
O Brasil é o segundo país com mais casos de covid-19 do mundo (mais de 600 mil) e é o terceiro com mais mortos, perto de 40 mil. O cemitério de Vila Formosa, na zona leste da maior cidade brasileira, é hoje um sinal evidente da pandemia.
“A nossa rotina era um pouco corrida, mas nada comparado ao que há hoje (...) Fazíamos por volta de 30 sepultamentos por dia. Em um dia muito corrido eram 45. Hoje estamos fazendo por dia uma média de 50 a 60 sepultamentos. Quase dobrou o número de sepultamentos mudança”, disse à Lusa James Alan, coveiro no cemitério há sete anos.
Os enterros são realizados um na sequência do outro, até mesmo depois do anoitecer. Nos sepultamentos das vítimas da covid-19 há no máximo cinco pessoas presentes, por determinação do governo local, e os funcionários receiam ficar infetados.
“Nós passamos praticamente o dia todos juntos e temos receio de nos contaminar”, disse James Alan.
“De um total de 50 até 60 sepultamentos que fazemos, em pelo menos uns 10 ou até 15 [deles, os familiares] querem abrir [os caixões], mas a orientação é que não pode” ser e os túmulos devem permanecer selados, acrescentou.
O Serviço Funerário Municipal de São Paulo disse à Lusa que só em maio foram realizados 1.891 enterros no cemitério Vila Formosa.
Em toda a cidade - considerando cemitérios municipais, particulares e o crematório -- foram registados 6.401 sepultamentos em janeiro, 5.985 em fevereiro, 7.077 em março e 8.296 em abril e 9.794 em maio deste ano, num total de 37.573 enterros, mais dez mil que no mesmo período do ano passado.
A prefeitura da maior cidade do Brasil divulgou no início abril um plano funerário criado para evitar o colapso no sepultamento de corpos diante do aumento de mortes pelo novo coronavírus.
Entre as medidas anunciadas pelo prefeito de São Paulo, Bruno Covas, consta a abertura de 13 mil covas, a contratação de 220 coveiros e a aquisição de mais de 30 carros para a frota do Serviço Funerário.
O pastor evangélico Rogério Xavier foi um dos que foi enterrar com colega, 63 anos, que morreu da Covid-19. Com uma Bíblia na mão, Rogério Xavier tentou confortar a família da vítima.
“Ele era um amigo, era um ministro da casa de Deus, tinha esposa, quatro filhos. Ele estava dentro de casa, não estava saindo, porém, os filhos têm de trabalhar e provavelmente ele pegou o vírus desta maneira. Pegou ele, pegou a filha, e dois filhos. A esposa e o outro filho não pegaram. Como ele era a pessoal mais frágil” acabou por morrer, contou o pastor à Lusa, visivelmente emocionado.
Na periferia da zona leste de São Paulo, os casos e as mortes provocadas pela doença têm sido frequentes.
Daiane Cristina Gomes Lígia Bernarda estava no cemitério na mesma ocasião para enterrar o seu avô, Dermival, 77 anos, que também morreu por causa da covid-19 e que só foi enterrado depois do anoitecer.
Durante todo o dia, a família aguardou que o corpo fosse libertado pelas autoridades de medicina legal. Sem poder ver o corpo do avô, Daiane lamentou um contexto que não honra a memória do avô.
“A gente ficou o dia inteiro, desde a meia note de hoje quando deram a notícia [da morte do avô] para a gente até cinco horas da tarde quando foi liberado o corpo. É uma falta de respeito. Ficamos do lado de fora esperando, aguardando a hora em que seria enterrado o corpo, com fome porque não temos condições”, apenas “esperando o enterro”, desabafou.
A pandemia no Brasil tem sido objeto de vários alertas internacionais depois de o Governo, liderado por Bolsonaro, ter começado por minimizar a doença, recusando medidas de confinamento e pressionando para tratamentos médicos cuja eficácia não está confirmada.
No meio da crise, houve duas substituições de ministros da saúde e o governo já anunciou que não pretende continuar a divulgar os números oficiais de infeções e mortes, alegando que os médicos estão a empolar os valores.
Mas em Vila Formosa, no cemitério fundado em 1949, o momento é de chorar os mortos.
“Nós estamos vivendo um tempo em que, quase todos os dias, estamos vendo [[mortes] nesta região da cidade, em Itaquera e São Miguel, que é uma região de periferia. Infelizmente temos notícias de um e de outro que morreu ou que está contaminado. Isto não é uma coisa incomum”, disse o pastor Rogério Xavier, a tentar racionalizar a dor num sítio onde já foram enterradas 1,5 milhões de pessoas.