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Crónicas

Pandemias

O país anda agora a olhar para Lisboa e para os seus “bairros da Jamaica”, a ver se a propagação do vírus estanca por ali, não vá ir por água abaixo este cheirinho a normalidade que entretanto programaram...

A situação faz-me lembrar aquele velho provérbio chinês: “Quando o dedo indica a lua, o estúpido olha o dedo”.

Que na planificação social e sanitária algo tenha mesmo corrido mal – dos hostels putrefactos onde arrumam os imigrantes, às jamaicas inacreditáveis para onde, de há muito, confinaram os sem eira nem beira –, deveria levar-nos a perceber que temos um problema “político” bem mais profundo que o Covid: o do nosso ancestral atraso e a ocultação da desigualdade e da miséria enquanto vírus estrutural que mina e contamina, ano após ano sem remédio, tudo o que deveriam ser objetivos primordiais da política e da economia.

De facto, é nas situações de calamidade – os fogos infernais, as chuvadas que alagam cidades e dizimam as colheitas, o laxismo institucional que acaba por originar mortes absurdas – que a propaganda do oásis rola aos tropeções no meio da catástrofe, infelizmente consolidando-se de novo a imagem de uma endemia nacional arcaica e agravada, onde a velha falta de recursos se combina com políticas imediatistas, incapazes de dar ao Estado e à nação uma visão de longo prazo: o que sobressai não é um desenvolvimento de rosto humano e a consolidação de maior justiça social, antes germinam e florescem à sombra dos mercados as economias “periféricas”, cavalgadas por interesses e tolhidas pela corrupção. Ou seja: a “normalização” do subdesenvolvimento, aceite pelo inconsciente coletivo e reciclado em alquimia eleitoral pelos políticos que vamos elegendo.

E aqui estamos nós outra vez, quarenta e seis anos depois de uma caterva de ilusões e de promessas incumpridas. A pandemia trouxe ao de cima o melhor e o pior de nós, como sempre acontece nestas situações, não só a caricatura a traço grosso de um país com medo de existir (no dizer de José Gil), mas as pequenas calamidades quotidianas que mancham ou renegam a dignidade – das pessoas, e da sociedade como um todo.

Há vozes que clamam no deserto da indiferença e das boas intenções que enchem os infernos de cada dia: contra a “pandemia da pobreza”, há que mobilizar-se face à emergência social, pois “a fome é uma realidade” (Bispo do Porto); as imagens do bairro da Jamaica são uma “vergonha nacional”, pois “a sociedade de hoje não se pode dar ao luxo de ter miséria” e “a miséria vai-nos cair em cima” (Bispo de Setúbal); aquilo que precisamos é de “reconstruir o tecido social” (Bispo do Funchal); “Se não trabalharmos para acabar com a pandemia da pobreza no mundo, com a pandemia da pobreza no país de cada um, na cidade onde cada um de nós vive, este tempo terá sido em vão” (Papa Francisco).

Os estereótipos da pobreza como “destino” resultante de uma desigualdade atávica, quando não da preguiça e da “ordem natural das coisas”, sempre foram uma constante da cultura lusitana (e não só) desde muito lá de trás! Mas a emergência social aguda que vem do afundamento da economia acabou por – lembrando o velho Eça – trazer esse estigma à crua e nua luz do dia, sem mais cobertura possível do manto diáfano da propaganda. Tornou-se claro: a pobreza é o resultado de escolhas políticas e económicas orientadas não pela procura da equidade e do bem comum, mas pelo inumano da ganância predadora e do lucro sem fim. Percebemos isso melhor agora, quando as bolhas virulentas das nossas “jamaicas” rebentam na cara pouco inocente do Estado (a que isto chegou).

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