As certezas da incerteza
Precisamos ser enganados, para amenizar a nossa angústia existencial. Precisamos que nos digam que “vai ficar tudo bem”
A humanidade nunca esteve preparada para viver na incerteza. Nada assusta mais do que o desconhecido.
Passos na noite, quando não se sabe a quem pertencem, causam medo e angústia. Passos na noite, quando um ente querido regressa a casa transmitem, a quem os ouve, um sentimento de alegria e segurança.
Diz o povo: “O futuro a Deus pertence”. No entanto, ao longo das eras, o homem sempre tentou, por artes de magia, adivinhação, interpelação dos deuses, conhecer o futuro. “Prever” o futuro por qualquer uma das “artes” conhecidas: cartas, búzios, voo das aves, entranhas de animais, interpretação de sonhos, oráculos, sinais meteorológicos, auscultação dos deuses...mesmo sabendo que o futuro é impossível de prever.
A falsa segurança que dá acreditar que se consegue antever acontecimentos futuros e, consequentemente, preparar-se para eles, quer evitando os seus malefícios, quer tirando partido de pretensas vantagens, constitui o ganha-pão de profetas, augures, mágicos, adivinhos, imãs, sacerdotes, bruxos, analistas avulsos e...políticos.
Não conseguir viver na incerteza leva, a maior parte das pessoas, a preferir ser enganado do que a sofrer a angústia do desconhecido.
Exigimos que o médico nos prediga a cura da doença, que o adivinho nos garanta que iremos ganhar a lotaria ou encontrar um grande amor, que o sacerdote nos prometa o céu, que o político estelionatário, ímprobo, nos garanta que, se for eleito, a nossa vida será de mel e rosas.
Precisamos ser enganados, para amenizar a nossa angústia existencial. Precisamos que nos digam que “vai ficar tudo bem”.
De preferência, queremos que nos digam o que deveremos fazer (ou não fazer) para sermos felizes. Preferimos fingir que não sabemos que estamos a ser enganados, porque tudo é melhor do que a incerteza do futuro.
As predições, para além de aplacarem o nosso medo, permitem-nos, quando as coisas correm mal, responsabilizar os outros. Afinal, limitámo-nos a seguir instruções que nos deram, a cumprir ordens, a acreditar em quem reconhecemos ter poder.
Esquecemo-nos que, na ânsia de obter alguma tranquilidade de espírito, hipotecamos o nosso futuro, deixamos de ser senhores de nós próprios, muitas vezes, abdicamos da nossa liberdade, da nossa capacidade de autodeterminação.
A maior diferença entre os profetas, feiticeiros e sacerdotes do passado e os preditores a quem exigimos, actualmente, certezas em relação ao futuro, é que os actuais em vez de drogas alucinogénias, búzios, cartas, voos de aves, entranhas de animais, sarças ardentes, ou encarnação de espíritos de antepassados, usam quantidades massivas de dados processados por potentes computadores e modelos matemáticos estatísticos.
Os “crentes” (quase todos nós) continuamos movidos pelo medo do desconhecido. Continuamos a preferir ser enganados do que viver na incerteza do futuro. Seja o futuro económico, seja o futuro de uma qualquer pandemia.