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Crónicas

Aqueles sábados no Laranjal

O meu pai está sentado no quintal com um olho no caminho e outro nas moscas e, volta e meia, ouve-se um estampido, é mais uma na longa conta de moscas mortas. Debaixo da cadeira, o Tonecas mói o brinquedo de pelúcia. O rádio de pilhas está mudo e dependurado na porta, enquanto eu escrevo na sala da televisão e mato saudades dos tempos em que vivemos aqui os três: o meu pai, a minha mãe e eu. O meu irmão dormia em casa das tias e, por isso, dividiu menos vezes o sofá.

Eu, ao contrário, partilhei-o por muitos anos. O meu pai no lado mais próximo da porta a dormir, eu a meio a tentar ver a telenovela ou o filme da sessão da noite da quarta-feira e a minha mãe colada ao candeeiro a bordar lençóis de seda (eram bem pagos). Lembro-me de que o meu pai não via o que dava na televisão, dormia sempre, mas negava, estava só de olhos fechados. E não aguentava cinco minutos, fosse de noite ou ao domingo à tarde, até para ver as notícias ou os concertos de música clássica.

A minha mãe também não via televisão, ouvia e comentava, enquanto enfiava a linha na agulha e acertava o dedal e a dedeira. Aquilo dos bordados não era para entreter, era para ganhar dinheiro e pagar melhoramentos em casa. E era por isso que não concordava com o facto de haver tantas línguas diferentes, não dava para seguir os filmes e bordar, não chegava a tempo de ler as legendas, mas não perdia debates, notícias, novelas, programas de bola, sabia sempre quem ia à frente no campeonato e se a época era de aperto para o Marítimo.

E discutia o assunto quando o meu tio Humberto parava na porta do caminho para deixar as compras do mercado, assim em sábados como este. Ou quase como este, que havia mais alegria e rádios a tocar a música pedida do Posto Emissor do Funchal, enquanto as mulheres estendiam a roupa e limpavam a casa e os homens bebiam um copo de vinho seco antes de voltar à obra, que era preciso deitar a lage de mais um anexo. Os homens tinham sempre pressa por causa dos fiscais da Câmara.

Pela tardinha, a música, aquelas canções de amor violento como o “Se te agarro com outro, te mato, te mando algumas flores e depois me escapo”, parava e sentia-se aquele cheiro a lavado, da roupa lavada, de cimento molhado, de corpos lavados com champô Foz e sabonete Ach Brito. A minha mãe fazia uma canja para o jantar e a televisão estava ligada no telejornal do Canal 1, que aos sábados o telejornal vinha em direto de Lisboa. Também davam os jogos de futebol em direto, era tudo por causa daquela antena grande em Santa Rita. Quando a emissão falhava metiam videoclips do Rod Stewart para entreter.

E era bom adormecer numa cama feita de novo, naquele Laranjal onde se ouvia a água correr na levada e um cão a ladrar ao longe, com a certeza de que o dia seguinte era domingo, dia de descanso até na nossa casa, o dia em que a minha mãe arrumava o bordado, penteava o cabelo e passava a tarde com as minhas tias. É desse tempo que a minha tia Conceição tem saudades, pergunta-me muitas vezes pelas irmãs, não sabe delas. Penso como é cruel responder que estão mortas, tão mortas como aqueles sábados de música alta.

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