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Crónicas

«Gesto a gesto vão correndo As palavras que o silêncio vai tecendo»*

Em tempo de fim de ano letivo atípico para todas as pessoas envolvidas na comunidade educativa, ocorre-me invocar os professores e professoras que marcaram de forma muito particular o meu percurso. Se me lembro disto é porque um dos professores da minha vida deu a sua última aula de Filosofia. Foi impossível não ficar comovida quando li o seu testemunho sobre a última aula (infelizmente virtual) e sobre estarmos presentes naquela aula, todos e todas nós, que passamos pela sua sala de aula ao longo de mais de 40 anos.

Registo também o lastro de outros professores e professoras que fazem parte do que sou:

Não esqueço a minha professora de Português do 9.º ano, professora Maria da Luz Escórcio, que nos propôs que apresentássemos à turma um livro de que tivéssemos gostado muito (o livro que apresentei era péssimo, mas é praticamente impossível descrever o prazer de preparar uma apresentação sobre algo escolhido por nós).

Não esqueço a minha professora de História de 9.º ano, professora Fátima Freitas, que me fez querer, à saída do 3.º ciclo, tirar o curso de História, a quem ainda hoje agradeço o tanto que me deu quando a encontro – numa escola em que lecionamos ambas, na rua quando nos encontramos por acaso, ou na cerimónia triste de despedida de alguém que ambas conhecemos.

Não esqueço o meu professor de Filosofia de 11.º e 12.º anos, professor Manuel Neto. Não esqueço que entrei na sua sala de aula a detestar a disciplina (e informei-o de que o dececionaria porque não gostava de Filosofia como gostava de Psicologia), e lembro-me de me ter espondido que esperava conseguir fazer com que eu mudasse de ideias – e fez. Foi com ele que descobri Kant, Descartes, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche, grande paixão da minha adolescência.

Depois, na universidade, não esqueço o meu querido professor de Antropologia Cultural e de Ontologia, professor Anselmo Borges, de quem sou amiga até hoje, que me permitiu desenvolver um trabalho sobre Mulheres e Filosofia e que, nas trocas de impressões sobre o andamento do trabalho, conseguia fazer com que descobrisse novos alçapões.

Não esqueço a minha professora de Filosofia Contemporânea, professora Fernanda Bernardo, que me abriu portas a uma série de autores e autoras que me fascinam até hoje. Foi a partir de um excerto lido em aula de «A Paixão Segundo G.H.», que parti à descoberta de Clarice Lispector, naquela altura arredada das prateleiras da maior parte das livrarias. Foi também nas suas aulas que descobri Luce Irigaray, a filósofa que trabalhei, a par com Clarice Lispector, no mestrado que fiz anos mais tarde.

Não esqueço a coordenadora do mestrado em Estudos sobre as Mulheres e minha orientadora, a professora Teresa Joaquim, também ela uma leitora de Luce Irigaray, que me guiou sempre que foi preciso, que me deu espaço quando interrompi o mestrado para ter um filho e a ele voltei dois anos mais tarde.

Não esqueço o gosto que adquiri pela sociologia com a professora Sara Falcão Casaca, na cadeira de Sociologia do Trabalho e do Lazer.

E, claro, não esqueço o meu professor das cadeiras de Epistemologia Geral, Filosofia Moderna e Ontologia. Não esqueço a primeira aula que com ele tive. Lembro-me o quanto contrastou com a aula que tinha acabado de ter com um outro professor, uma aula carregada de medos: de que era preciso não sucumbirmos à cidade e aos seus apelos, de que era preciso uma série de requisitos que ninguém, naquela sala, tinha. Foi depois desta primeira aula cinzenta que entrou o professor João Maria André e iniciou a sua primeira aula com a leitura de um excerto de «As Cidades Invisíveis», do Italo Calvino, que nos deixou sem fôlego; na mesma aula exortou a que levássemos a Filosofia para lá das paredes da universidade que carregava já demasiados séculos. E não me esqueço que também foi ele que me pôs a ler, numa outra cadeira, «A Obra ao Negro», de Marguerite Yourcenar, e o «Discurso Sobre a Dignidade do Homem», de Picco Della Mirandola. Foi com ele que descobri Nicolau de Cusa ou Marsílio Ficino. Foi ele que no primeiro (e único) Encontro de Ciências Sociais e Humanas no Porto Santo, a meados da primeira década do século, embalou a audiência com um extraordinário excerto de «La Nouvelle Histoire de Mouchette» (por traduzir), de Bernanos, que passo a transcrever:

«Ela tinha descoberto a prodigiosa faculdade de expressão das mãos humanas, mil vezes mãos reveladoras que os olhos, porque elas não são, de modo algum, hábeis a mentir, deixam-se surpreender a cada minuto, ocupadas como estão com mil cuidados materiais, ao passo que o olhar, sentinela infatigável, vigia nas ameias das pálpebras... As mãos do pai, primeiro, pousadas nos joelhos, imóveis todas as noites, quase terríveis à luz de uma única lâmpada que faz dançar todas as sombras, com um punho cujo osso parece prestes a romper a pele, e aquele tufo de pelos em cada articulação dos dedos enormes. (...)... As mãos destes jovens irmãos, tão depressa tornadas mãos de operários, mãos de homens. E ainda as mãos das mulheres da quinta, que cheiram a leite ácido (...). As da Madame bem mais pequenas, as pontas dos dedos picadas com pontos negros, da agulha... Mãos laboriosas, mãos trabalhadoras, que o repouso torna ridículas. E deste ridículo os pobres têm alguma consciência, porque furtam de propósito ao olhar as suas mãos desocupadas. Diz-se do trabalhador ao domingo que “não sabe que fazer às mãos”, brincadeira cruel, pois ele não deve o pão de cada dia senão ao trabalho destas criadas».

E que dizemos nós, e que nos dizem a nós, sobre as mãos de um professor? Quantas vezes reparamos nas mãos humanas de uma professora? Como é possível vislumbrar a faculdade de expressão das mãos através de aulas mediadas por um teclado e ecrã? A humanidade destas mãos vai muito para além dos conteúdos, relatórios e avaliações em tabelas de excel.

O meu professor deu a sua última aula de Filosofia e lamento por todos e todas que passarão por Coimbra e já não terão a sorte de o ter nas suas aulas.

Quando entro numa sala de aulas, estou acompanhada por todos estes professores e professoras, e tenho a esperança de poder ser para alguns dos meus alunos e alunas algo minimamente parecido com o que estas pessoas foram, são e serão para mim.

Este texto é sobre dívida, sobre testemunhar a minha dívida para com quem encontrei numa sala de aulas e a quem serei sempre grata por tanto que me deram. E dão.

*versos de um poema de João Maria André

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