Um homem do Porto da Cruz
Dá-nos alguma consolação saber que o novo Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) corresponde com precisão a uma escolha direta do Papa Francisco, que assim continua a sua “política” de privilegiar como interlocutores aqueles que estão em sintonia com a (sua) linha renovadora de uma Igreja “em saída” e que, numa dinâmica de nova evangelização, é capaz de abraçar também as “periferias” – urbanas, económicas, culturais, morais, e outras...
Foi, de algum modo, o que aconteceu agora com a escolha do Bispo de Setúbal para presidir à CEP, quebrando a longa tradição de tal escolha recair, de há muitos anos, no cardeal Patriarca de Lisboa. Essa ruptura com o “centralismo” – Lisboa, sempre Lisboa – e o entendimento do atual Papa de que as periferias devem ser convocadas ao núcleo central da ação da Igreja – como já se vira com os cardeais Marto e Tolentino (da periferia lusitana) –, tomou corpo e palavra em D. José Ornelas Carvalho, um madeirense do Porto da Cruz com longa experiência de missionário (dehoniano), pessoa de diálogo franco e aberto, com grande sentido prático e capacidade de humor (virtudes que não superabundam no meio...). Acresce uma sólida formação teológica e um discurso capaz de articular a exigência evangélica com a intuição de quem sabe que há que ter os pés na terra e sujar as mãos nas “alegrias e tristezas” da vida quotidiana. Uma impressão de consistência e verdade é a que nos fica da conversa com este homem que sabe o que é “apanhar erva e tirar regos” nas courelas íngremes lá no cimo da Cruz da Guarda, onde a riqueza afetiva e a entreajuda de uma família cristã numerosa haveria de lhe robustecer para a vida traços de alegria, fraternidade e vigor moral: algo da força telúrica da Penha d’Águia se projeta na sua relação com os outros e no modo de viver o compromisso da fé. Para encurtar razões, diria que o novo presidente da CEP é não apenas um “homem da Igreja”, mas antes e sobretudo um homem “de” Igreja – e isso faz toda a diferença: passar do eclesiástico ao eclesial é todo um programa de vida e de ação, e na comunidade crente se percebe que a identidade dos conteúdos (da pregação) não se dissocia da relevância da proposta evangelizadora (no agora da vida).
Tudo isto vem de lermos as intervenções de D. José ao longo dos últimos dias, por exemplo quando diz que os padres não são aqueles que realizam “cerimónias” e “ritos”, mas os que se distinguem por “atitudes” e “gestos” na missão de atuar a caridade. A sua voz desassombrada tem sido das mais críticas face à situação de emergência social que vivem os portugueses: o aproveitamento da pandemia para a sonegação de direitos e liberdades, com o “escândalo da fome” e os impasses do desemprego a trucidarem milhares de famílias. Pelo que, agir é preciso, não pela caridadezinha, mas por uma solidariedade em rede, com soluções criativas que chamam o Estado ao dever das suas obrigações. E se já não estamos no tempo em que não havia bispos sem a “bênção” do Estado, o certo é que qualquer “senhor governo” sempre teve simpatia por confinar a Igreja à sacristia, não gostando mesmo nada de “bispos vermelhos” (por enquanto, uma tradição de Setúbal...), antes preferindo lidar com a piedade das mãos para o céu, que com o esgar impudico da injustiça nas coisas da terra...
Já quando discursou no Congresso dos 500 Anos da Diocese, a inteireza (da pessoa com o discurso) saltava à vista: “A ilha/arquipélago pode ser uma prisão ou uma utopia criadora (...) há que cuidar localmente da ecologia da ilha e das pessoas, com a atenção, competência e carinho com que a bordadeira borda a sua toalha, ou o lavrador desenha, rega e torna fecundas as suas hortas”.
É bem verdade, D. José: “Da terra nascem os homens”!