Racismo em Portugal tem a subtileza do “português suave”
Presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima aborda várias questões no dia em que a APAV celebra 30 anos
Um debate sobre o racismo “só pode ser positivo”, defende o presidente da APAV, que acha que o racismo em Portugal tem a subtileza do “português suave” e teme que o momento beneficie objetivos totalitários, populistas e pouco democráticos.
Foram milhares os que saíram às ruas, em Lisboa, Porto e Coimbra, no início do mês, em protesto contra o racismo, motivado sobretudo pela morte do afroamericano George Floyd nos EUA e pela onda de protestos que se lhe seguiu no país, mas “com um pé” na discussão que o país continua a evitar fazer, a da existência de racismo latente na sociedade portuguesa, que invariavelmente leva a uma divisão entre os que acham que ele existe e os que acham o contrário.
Portugal tem receio de debater o racismo? Para o presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), João Lázaro, “nós”, portugueses, “temos alguns tabus”.
“Nós temos alguns tabus. Temos uns tabus mais subtis. É os efeitos positivos e negativos do ‘português suave’. O nosso racismo muitas vezes é mais subtil. A nossa discriminação é mais subtil, a própria violência noutras áreas acaba por ser menos exuberante do que noutras latitudes, como sejam os nossos vizinhos de península”, afirmou.
Em entrevista à Lusa a propósito dos 30 anos da associação, que hoje se assinalam, o presidente da APAV entende que “só pode ser positivo haver um debate e uma reflexão alargada, um conhecimento, debate esse que nesta altura existem algumas dificuldades para ser feito sem ser manietado por objetivos mais totalitários e visões mais populistas da sociedade e da sua instrumentalização para objetivos que são muito pouco democráticos”.
Para João Lázaro, a manifestação de 06 de junho mostra que “vivemos num mundo em que está tudo polarizado e em que as reações são extremadas”, acrescentando que, do ponto de vista da APAV, o importante a valorizar é “o património de direitos humanos”, independente da origem e contexto de cada pessoa.
“Reflexão e debate sim, claramente, para a consagração dos direitos humanos ser de conquista em conquista, e não para ser apenas objeto instigante, para um retrocesso de direitos. Há direitos que não se discutem, exatamente porque são direitos humanos”, defendeu.
O estado polarizado da sociedade reflete-se no atual quadro político nacional, que passou a integrar no parlamento um partido, o Chega, com um discurso marcadamente hostil em relação a uma etnia específica: os ciganos.
“A nós preocupa-nos porque a discriminação é claramente uma forma de violência. Essa violência discriminatória anda paredes meias com crimes de ódio. Os decisores políticos devem claramente dar o exemplo da integração, da sociedade plural, de não discriminação que deveremos ser todos nós. A nossa história não nos ensina outra coisa que o desfecho não seja esse. Os crimes de ódio, de discriminação, têm vindo a subir e isso é claramente um fator que nos preocupa, quer em termos de prevenção, quer em termos de intervenção”, defendeu o presidente da APAV.
É do Chega a iniciativa da próxima manifestação em Lisboa, no sábado, que pretende juntar os que acham que não existe racismo em Portugal, na qual o líder do partido, André Ventura, espera reunir cerca de 1.500 pessoas.
Ventura demarcou-se entretanto do apelo lançado pelo líder da extrema-direita, Mário Machado, que pediu aos seus seguidores que se juntassem à manifestação.
Proximidade dos vizinhos no confinamento pode explicar redução de violência doméstica
Um confinamento muito vigiado, com todos os vizinhos em casa, pode explicar que não se tenha assistido a uma escalada da violência doméstica no período de emergência, admite a APAV, que já nota um regresso à normalidade.
“Tranquilidade aparente” foi a expressão usada por João Lázaro para descrever o que se passava em relação à violência doméstica no período do estado de emergência provocado pela pandemia de covid-19 no que à violência doméstica e aos pedidos de apoio recebidos pela APAV diz respeito, quando há semanas foi recebido em Belém pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para falar sobre a situação.
O presidente da instituição, João Lázaro, disse que mantém a análise feita naquela altura sobre aquela altura, baseando-se num decréscimo de atendimentos na área da violência doméstica, mas sem quantificar, já que os dados exatos estão ainda a ser recolhidos e trabalhados e a APAV apenas costuma divulgar estatísticas via relatório anual.
“A nossa perceção é que a violência doméstica não disparou, como muitos vaticinaram e aconteceu noutros países”, disse.
As estatísticas das autoridades policiais que foram sendo divulgadas durante a emergência vão nesse sentido, indicando uma tendência de decréscimo nas queixas.
“Estávamos à espera de ver a análise estatística do ponto de vista policial o que tinham sido os crimes de ofensas corporais mais graves, e até de homicídio, para ver aí, como aconteceu por exemplo com o pico da crise de 2008, alguma válvula de escape dessa violência tremenda acumulada. Isso não aconteceu. Os homicídios de natureza conjugal não aumentaram, antes pelo contrário. Nesta altura já estamos a ver um regresso à normalidade, quer em termos de pedidos de apoio, quer em termos de visibilidade do fenómeno, quer em termos de fatalidades e de homicídios conjugais”, disse João Lázaro.
Admitindo que qualquer hipótese de explicação não passa, para já, disso mesmo, uma hipótese -- “Diria que a história deste mês e meio, dois meses, ainda está para ser claramente estudada” -- aventura-se a explicar os números do confinamento com o próprio confinamento, que fechou em casa, vítima e agressores, mas também todos os seus vizinhos.
“Isso pode, porventura, ter desempenhado um papel de não ter escalado a violência doméstica, pelo menos nesse período. Agora, para o bem e para o mal, essa tendência normalizou-se”, disse.
Em 2019, só as vítimas de violência doméstica representaram 79% dos crimes acompanhados pela APAV, de acordo com os dados da associação.
São mais de 80 as tipologias de crime acompanhadas pela APAV, mas a imagem de associação que apoia vítimas de violência doméstica predomina, como o confirmam as estatísticas dos atendimentos. Uma preponderância que não é limitativa para o trabalho da APAV, mas sim reflexo de uma crescente preocupação da sociedade com o tema, garante João Lázaro, referindo que a APAV presta apoio nesta área desde a fundação.
Trinta anos de trabalho podem, no entanto, não ser suficientes, e até revertidos num instante. Para João Lázaro este é “um combate que não tem fim”, como demonstram comportamentos polarizados da sociedade, que ao mesmo tempo que revela maior preocupação em dar visibilidade ao tema e em ajudar as vítimas, quebrando ciclos de violência e a ideia de que entre um casal “ninguém mete a colher”, ainda aplaude agressores à porta dos tribunais.
“Pode não ser um caminho fácil de trilhar, mas existe um sistema que funciona, que está lá para servir quem é vítima de crime e que é possível uma vida sem violência. É uma mensagem que tem que ser renovada todos os dias, também para criar essa intolerância social a esse fenómeno de violência [...] Os últimos anos têm-nos ensinado como sociedade que os avanços dos direitos não é nada de garantido, que é algo que os cidadãos e as organizações da sociedade civil têm que continuar. Essa luta faz-se todos os dias”, afirmou.
A velhos problemas juntam-se novos desafios, trazidos pelo caminho da digitalização, com uma atenção cada vez maior à cibercriminalidade, às violações de privacidade e proteção de dados, mas também trazidos pela evolução etária da sociedade. O envelhecimento trouxe mais violência contra idosos e em 2019, segundo os números da APAV, quatro idosos por dia foram vítimas de violência.
“É claramente uma das grandes preocupações da APAV enquanto grupo alvo específico de violência e de crime”, admitiu João Lázaro”.
Esta é uma área complexa de intervenção, referiu, não só pela dificuldade em chegar às vítimas, mas também pelo perfil dos agressores.
“Há aqui um elemento que é claramente inibidor de a vítima pedir ajuda, que é o reconhecimento de que o agressor é uma criação sua, é um filho, é um neto. Isso implica desde logo conseguir chegar-se a essa pessoa e conseguir fazer passar a mensagem de que não é uma vergonha ser-se vítima, se há responsabilidade é do agressor, não é da vítima. A vítima de crime uma das primeiras atitudes que tem é autoculpabilizar-se. Isso muitas vezes é mais verdade quando os agressores são carne da nossa carne”, disse.
O caminho, do ponto de vista do presidente da APAV, terá de ser o de uma intervenção no sentido da autonomização e independência e não a abordagem atual, que privilegia a institucionalização, recusando uma visão de “infantilização” dos idosos, que os exclui da tomada de decisões sobre a sua própria vida.
“Essa tem sido de alguma forma a abordagem, através dos maiores acompanhados, a questão é que falta pensar isto como sistema integrado em termos de respostas. Porque os direitos não se anunciam apenas, criam-se condições de políticas públicas para eles poderem realmente ser exercidos e poderem ser verdadeiros numa base diária, sob [pena de] descrédito do próprio sistema”, disse.
João Lázaro não descarta responsabilidades do Estado em crimes como o de abandono, sublinhando que a primeira responsabilidade em termos de contrato social é entre o cidadão e o Estado.
“Cabe também ao Estado criar as condições para que quem cuida possa cuidar, possa ter condições para ser cuidador. Passa por várias medidas, sociais e fiscais. O Estado muita vezes se demite, em vez de promover políticas de autonomização, promove políticas de institucionalização”, afirmou, referindo que algumas dessas opções tiveram consequências, por exemplo, ao nível do impacto da covid-19.
APAV questiona estatuto autónomo para crianças vítimas de violência doméstica
A APAV entende que uma criança deve ser considerada vítima de violência doméstica quando é exposta ao crime e não apenas quando é o destinatário principal da violência exercida, mas criar um estatuto autónomo não é necessariamente a solução.
“Para nós sempre foi essencial que a criança seja considerada uma vítima de violência doméstica. Não só, como é óbvio, quando é vítima e destinatário primeiro dessa violência, mas também quando é exposta a essa violência. A nossa questão prende-se com haver uma falta de visão integrada do ponto de vista legislativo dos vários tipos de vítimas, dos vários tipos de direitos e de haver muitas vezes apenas a legislação do momento, do impulso, e que isso, em última análise, acaba por tornar menos operacional a lei”, disse o presidente da APAV.
A Assembleia da República voltará a discutir o tema do estatuto de vítima autónoma de violência doméstica para as crianças expostas ao crime por via de uma petição pública, que já conta com mais de 26 mil assinaturas (apenas são necessárias quatro mil para a admissão no parlamento).
A petição é subscrita pela presidente honorária, Manuela Eanes, e a atual presidente, Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança, pelo antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira, o advogado Garcia Pereira, mas também por associações como a Associação Dignidade; Associação de familiares e amigos/as de Vítimas de femicídio- ACF, Associação Das Mulheres Contra A Violência, Mulheres De Braga, Associação Abraço ou a UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.
A discussão pode regressar menos de um ano passado sobre o chumbo em dezembro passado no parlamento de projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PAN nesse sentido. Já em maio deste ano o parlamento voltou a debater o tema, a propósito da proposta do Governo para rever o regime jurídico de prevenção da violência doméstica, estando a matéria a ser trabalhada em sede de especialidade.
Se alguns partidos se batem pela criação de estatuto autónomo, a sua necessidade não parece evidente, entende João Lázaro, que defende outra abordagem.
“Para nós é óbvio que a criança exposta deve ser protegida pela lei. Deve ser, de um ponto de vista da lei que proteja as vítimas de crime e não de começarmos a colecionar estatutos ou a fazermos anexos de estatutos ou ‘puxadinhos’ de estatutos”, disse João Lázaro, que entende que é preciso “pensar nas vítimas de crime face às suas necessidades conforme o tipo de crime do ponto de vista mais integrado, e até mais holístico, do sistema de justiça”.
Mais do que novas leis, João Lázaro diz que é preciso “uma clarificação” das que existem, referindo que estão consagradas na legislação “soluções que estão muito longe de serem praticáveis”, com “muitos buracos” e omissões de direitos, o que faz parecer que “ninguém se parece ter preocupado muito com a sua operacionalização”.
“Há uma grande confusão que claramente não beneficia uma aplicação eficaz, clara, transparente da lei de proteção e garantia dos direitos para os quais foram pensadas”, disse.
Mais do que legislação avulsa, que João Lázaro entende que pode ser contraproducente, e análises caso a caso de direitos das vítimas consoante o crime, a APAV insiste na necessidade de um integrado, transposto para o Estatuto das Vítimas de Crime, que deve ser revisto e melhorado, para garantir de forma imediata direitos que a associação considera essenciais e que ainda não estão assegurados, como o direito à informação.
“O direito à informação é um direito basilar e chave de cada vítima poder aceder a todos os outros direitos. Estes direitos de informação e de acesso a serviços de apoio são fundamentais para as pessoas poderem ser capacitadas, poderem ter ajuda e poderem exercer os seus direitos. Nós acreditamos que a qualidade de justiça também se mede pela forma como se reconhece e trata as vítimas de crime”, disse.
As condições de segurança do país e o empenho das forças de segurança e do Ministério Público nesse objetivo permite, na opinião de João Lázaro, dar o “salto qualitativo” na garantia efetiva de direitos às vítimas de crime, mas ainda que haja “uma clara evolução” nesse sentido nos últimos 30 anos, ainda há “um longo caminho para se trilhar”, que retire a vítima de uma situação ainda “tão marginalizada no sistema, que continua a ser claramente arguido-centrista”.
“Houve claramente uma evolução, não chegámos lá ainda. Se todos os direitos são realmente verdade e quotidianamente efetivados para todas as vítimas de todos os crimes e não só para as vítimas de alguns crimes? Diria claramente que não, que há estádios diferentes de desenvolvimento”, disse, referindo que a profusão de produção legislativa contraria as “boas intenções” do legislador e provoca “atropelos” à efetividade dos direitos.
Há ainda “uma característica muito nossa enquanto comunidade”: a “grande diferença” entre o que está legislado, os “edifícios jurídicos magníficos” e a sua concretização, “a sua efetivação todos os dias, para os beneficiários reais que devem existir”.
Num contexto europeu no qual se estimam 75 milhões de vítimas de crime todos os anos, com muitas vítimas invisíveis, não declaradas, não registadas, João Lázaro destaca o papel de associações como a APAV para chegar às chamadas “cifras negras” e ajudar a trazê-las para dentro do sistema, garantindo apoio e direitos.