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Crónicas

O luto das ilusões

Eu sei, foi há mais de uma semana que o “nosso” Cardeal fez o discurso do 10 de junho, mas vale a pena retomá-lo: até porque “no pasa nada”, entretida a pátria com a saga do “Ronaldo das Finanças” (passar de jogador a árbitro), a nação focada em assuntos como a telescola do Professor Marcelo, ou o vandalismo analfabeto do politicamente correto. Isto, é claro, fora a progressão do Covid, a tornar pouco recomendável o “milagre” português. Por isso, pensar é preciso, já que a propaganda abafa quase tudo e a luta da sobrevivência tornou-se, infelizmente, a sofrida odisseia de muitos milhares de portugueses.

O discurso de Tolentino Mendonça nos Jerónimos – aqui apenas evocado em “eco”, seja-me permitida a ousadia... – foi não só uma digressão literária de altíssima qualidade, mas uma acutilante reflexão sobre o momento por que passa Portugal, no desafio de sobreviver como nação à enorme tempestade que sobre nós se abateu inesperada e de, todos no mesmo barco, se refazer a rota do nosso destino comum. Viagem exterior mas sobretudo interior, ela é na verdade um roteiro longo que se distende no tempo, o barco em mar alteroso sofre agruras mortais, mas a esperança nunca é vencida e a sabedoria que emerge leva-nos finalmente às questões fundamentais: quem somos, para onde vamos, que sonhos nos movem – individual e coletivamente. Um verdadeiro cataclismo deixou a árvore – o país e o mundo – de raízes para cima: agora, “desconfinar” – no espaço e na linguagem – é redescobrir formas criativas de habitarmos a Casa comum, plantar raízes para um novo vigor no desafio maior que é existirmos em conjunto. Isso leva-nos ao grande Pacto da Vida, que a todos congrega face ao sofrimento do presente e à angústia do futuro, e que só pode ter realização na coragem de celebrarmos os “pactos” que têm ser feitos: o pacto comunitário, plantando novas sementes de compaixão e dando toda a primazia ao cuidar, numa reconfiguração ética da ação social e política; o pacto intergeracional, capaz de implantar nas relações sociais a visão mais inclusiva de não deixar ninguém para trás, articulando a sabedoria dos mais velhos com o ímpeto e os projetos dos mais novos; o pacto ambiental, instaurando uma nova sensibilidade ecológica e uma relação não predadora com a natureza, na busca de uma “ecologia integral”. Na verdade, a estes três pactos subjaz um axioma fundamental: “A vida é um valor sem variações”.

Na entrevista dada depois à Renascença, são retomados os pontos fortes do seu discurso: uma visão outra do mundo e da vida tem de ir para lá das opções casuísticas de sobrevivência. A pandemia foi uma abalo traumático que expôs mais cruamente a desigualdade e a exploração irresponsável da natureza; a alternativa tem de gerar uma nova cultura de vida comunitária. A fragilidade da condição mortal ficou mais exposta nesta tempestade; a viagem de volta tem que ser já por outro caminho e com novas soluções de navegação. A virulência de muitas formas se fez violência, até ao inimaginável de não poder fazer-se o luto de milhares de vidas ceifadas, normalizadas pela estatística a cada telejornal. Mas esta violência extrema sofrida pelos que ficam, pode ajudar-nos a perceber o quanto estamos a entrar noutra época da história: para além do luto da morte, diz Tolentino, temos que fazer “o luto das nossas ilusões”. Muitas delas trouxeram-nos até aqui, encenando falsas narrativas de poder e de exploração num verdadeiro descalabro triunfal – afinal, finito e mortal. Sobreviver à perda e ao desastre vai levar tempo, pois a viagem é um processo interminável – dos escombros, um “rasto de fulgor” refaz sem cessar a vida, em busca do sentido e de verdadeira humanidade.

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