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Crónicas

A última vez que me senti quase normal

O mar e sol fazem milagres e, talvez por isso, a última vez que me senti quase normal estava estendida na espreguiçadeira, ouvia-se o rumor das ondas e das conversas e, se não fosse a máscara na mochila, diria que estava tudo como dantes. Um antes que, no que me diz respeito, remonta aos meus 16 anos, quando a praia era o facto mais interessante das férias e ganhava até às matinés no Cine Casino.

A praia ou o banho, como se dizia no Laranjal, implicava uma série de preparativos, peripécias e acontecimentos que a colocavam na secção de assuntos importantes. Quem ia contava para a história; quem se apresentava no início das aulas com o bronzeado do autocarro estava fora da vida social. O tom de pele castanho alcançado ao sol e com a ajuda da mistura de óleo Johnson e Coca-Cola fazia disparar os índices de popularidade de uma miúda.

E, claro, todas as adolescentes querem ser populares. Ou a adolescente que eu fui queria tanto que se bateu contra o preconceito que o Laranjal conservador tinha contra “o banho”, contra as raparigas que iam ao banho. O banho pertencia à categoria dos antros e os antros incluíam as discotecas e os cafés. Num lugar onde os pais e os maridos decidiam a altura dos vestidos e mandavam no comprimento do cabelo, não é difícil perceber a resistência à ideia das filhas e as noivas de biquini numa praia à vista de todos, sobretudo à vista dos olhos de outros homens.

Lembro-me de que, para sossegar a minha mãe, comprei um fato de banho dos mais tapados, mas, às escondidas, usei o biquini da minha prima Ana e isso salvou o meu primeiro Verão de praia sem tutor. Eu escolhia os dias, o lanche, se fazia o caminho a pé ou pedia boleia ao fim do dia, quando depois daquele duche gelado nos balneários do Lido, as pernas pesavam. E era cá uma aventura, que a mim calhavam sempre as furgonetas, os carros velhos com condutores que diziam coisas como “semos do Funchal”.

Os bonitos iam sempre para as outras que, nessa época de inocência, ouviam-se histórias bonitas de amores que tinham começado assim, numa boleia de 20 minutos entre o Lido e a Avenida do Mar, mas as miúdas destas histórias não entravam de cabeça no toboggan, nem se atiravam de pés das pranchas ou comiam waffle com chantilly como se não houvesse amanhã. Eu fazia isso tudo e dormia feliz que, do que gostava mesmo, era do mar e do sol, de entrar ainda cedo e sair pela tardinha, quase à hora de fechar.

Eu tinha sido sempre diferente, maior quando os outros eram mais baixos, mais gorda quando todos eram magros. A primeira vez em que me senti normal foi nesse Verão de 1987, com 16 anos. Tinha o mesmo tamanho, o mesmo bronzeado, as mesmas aventuras. Não era a gorda, a rapariga do Laranjal com a pernas tisnadas só dos joelhos para baixo e aquele fato de banho quase até ao pescoço.

E este ano, estendida na espreguiçadeira, voltei a sentir o mesmo. A praia foi o primeiro lugar onde a vida me pareceu quase normal.

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