Como viver em tempo de crise?
É um erro julgar que a acção só é possível através de uma visão simplista e maniqueísta da situação
Perante a crise que atravessamos, devemos distanciar-nos, reposicionar este momento num quadro mais amplo das grandes mutações que já conhecemos, apreender este ciclo que acaba e a nova ordem que se abre diante de nós. Neste período crítico de pandemia em que os desafios são cruciais e em que o pior é possível, nunca devemos olvidar que o improvável pode sempre acontecer.
Mesmo quando tudo concorre para a catástrofe, a complexidade do real pode gerar situações inesperadas. Mantenhamo-nos prontos a acolher o improvável, mantenhamo-nos atentos à utilização positiva desta crise, vejamo-la como uma oportunidade para uma nova relação com o poder democrático, com a riqueza monetária e, por fim com o sentido da vida.
As crises agravam as incertezas, favorecem as interrogações: tanto podem estimular a busca de novas soluções como provocar reacções patológicas como por exemplo, a designação de um bode expiatório. Portanto, são profundamente ambivalentes.
Para compreender o que se passa e o que se vai passar no mundo é preciso ser sensível à ambiguidade. E o que é a ambiguidade? Ela traduz-se pelo facto de uma realidade, individuo ou sociedade, se apresentar na forma de duas verdades diferentes ou opostas, ou de revestir duas faces, sem que se saiba qual delas é a verdadeira.
O segundo elemento necessário para essa compreensão é a ambivalência: quando um processo apresenta dois aspectos de valor diferentes e por vezes opostos, dizemos que é ambivalente.
Por exemplo, na sua face positiva, a Europa mostrou uma mensagem de compreensão dos outros, do humanismo cristão que nasce da confluência entre o evangelismo e as ideias gregas. Se nos primeiros séculos esta faceta era muito secundária, a Europa veio a tornar-se defensora dos valores da liberdade. Deste modo, a ambivalência é envolvida num processo, como todo o valor, e pode adquirir maior ou menor relevância.
Existe também uma ética da compreensão que começa por nos pedir, em primeiro lugar, que compreendamos a incompreensão, que tem numerosas origens: o erro, a indiferença em relação ao outro, a incompreensão de uma cultura por outra, a possessão por deuses, mitos, ideias, o egocentrismo, a abstracção, a cegueira, o medo de compreender... Só mais uma palavra sobre esta última fonte de incompreensão: compreender não é justificar, compreender o assassino não significa tolerar o crime que ele perpetra.
A compreensão complexa comporta uma dificuldade temível. Ao levar em consideração bifurcações, engrenagens, que tanto conduzem ao pior como ao melhor, e muitas vezes a ambos, ela enfrenta constantemente o paradoxo da responsabilidade/irresponsabilidade humana.
No artigo do mês passado eu citava o Papa Francisco dizendo que esta pandemia nos lembra que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos. Oxalá mexa connosco dentro do que está a acontecer: É tempo de remover as dificuldades, sanar as injustiças que minam pela raiz a saúde de toda a humanidade inteira! E, recorda-nos Francisco, a poucos dias de Fátima, que ser cristão é ser peregrino... Porque o segredo da felicidade, o poder da fé e a força libertadora do amor são o caminho que o peregrino tem de enfrentar.
Peregrinar a um qualquer Santuário no Mundo, é das mais verdadeiras e profundas manifestações de Fé do Povo de Deus, conclui Francisco.
De facto, o ser humano é sempre alguém a caminho como sublinharam os filósofos e teólogos como o Professor Anselmo Borges, nunca feito, a fazer-se. A peregrinação adquire aqui todo o seu sentido. O Homem é por natureza peregrinante. A peregrinação quer dizer viagem, difícil, ao estrangeiro, muitas vezes a um lugar sagrado. No caminhar da vida, o crente sabe que não vai só, é acompanhado por Deus e lá, no lugar santo, tem a alegria de pré-saborear o destino da sua vida, que é a plenitude com a humanidade inteira em Deus. Por isso, da peregrinação, regressa com outro ânimo para as tarefas, fáceis ou duras, do quotidiano da vida, com outro horizonte.
Pela sua constituição, o ser humano é no espaço e no tempo. E segundo Anselmo Borges, o espaço não é homogéneo e o tempo também não. Há o espaço vulgar e o espaço sagrado, o tempo vulgar e o tempo outro, um tempo qualitativo, sagrado. E Maio (13 de Maio) é um tempo novo e outro, os peregrinos põe-se a caminho de Fátima (lugar visitado e abençoado pela Mãe), para um encontro vivificante com Ela – e neste ano de pandemia havia tanto para contar e desabafar e chorar e suplicar...
Mas não foi possível. A dor é sem fim e sem conta, mas Maria compreende e quer que se fique em casa, onde também é possível encontra-la. O encontro físico em Fátima ficará para mais tarde. O mais importante é a peregrinação interior, ir ao mais intimo e encontrar Deus.
Para tal, não é necessário ter uma crença específica, nem existe apenas uma forma de a percorrer e de lá chegar.
Já o fiz dezenas de vezes, em Fátima como noutros Santuários, e sempre os passos como peregrino através do caminho da vida me trouxeram uma profunda mensagem espiritual como a todos que estão decididos a viver de um modo verdadeiro e em consonância com aquilo que trazem gravado no coração.
No decorrer da viagem, desde o instante em que decide deixar a sua cidade e percorrer o caminho que o levará à Cidade Celestial, o peregrino encontra diferentes pessoas e lugares, que representam cada uma das etapas que deve ultrapassar para alcançar o seu destino. Em cada encruzilhada, um novo destino. Em cada vitória uma nova responsabilidade. É sempre uma incrível experiência humana e espiritual porque trás consigo uma mensagem de esperança e é um modelo impar de perseverança e de alento necessários no meio das dificuldades da vida. É verdadeiramente inspiradora e motiva a reflexão sobre aquilo que estamos dispostos a abandonar ou a guardar connosco quando decidimos seguir a nossa verdadeira missão.
E não se chega ao fim como se começou: após a interrupção na nossa vida sedentária mas frenética, o enfrentar os nossos medos e limites tão frágeis, o silêncio de estar connosco próprios, é inevitável pensar o que nos faz verdadeiramente falta “na mochila”, para não desperdiçarmos forças a arrastar peso morto. Também o Evangelho diz que Jesus começou a sua pregação assim: Mudai de vida! “Convertei-vos”, mudai de mentalidade, de modo de pensar. O “caminho” é de todos que o querem fazer... Dado que as consequências de uma acção são incertas, a aposta é ética, longe de renunciar à acção por medo das consequências, assume essa incerteza, reconhece os riscos, elabora uma estratégia. A aposta é a integração da incerteza na esperança. É um erro julgar que a acção só é possível através de uma visão simplista e maniqueísta da situação. A complexidade incita aos adiamentos, suscita a hesitação que pode ser por muito tempo, um obstáculo à acção, mas não impede de decidir. A incerteza estimula porque apela à aposta e à estratégia. Claro que não se deve avançar de modo impulsivo e irreflectido, mas é preciso agir.
Por isso eu digo, entra no caminho, mantem-te firme e com coragem, e terás toda a ajuda necessária até ao fim da tua viagem.