Calamidades...
Faz hoje oito dias celebrou-se (e de que maneira!) o 1º de maio. A meados da próxima semana celebra-se o 13 de maio. Duas datas, duas conexões aparentemente estranhas, mas que podemos ligar pelos fios (in)visíveis da calamidade que nos cabe.
Nem mesmo em tempo de pandemia e com diretivas de confinamento obrigatório — o governo lá sabe quando e a quem faz cedências —, se a maquinaria festeira da “unicidade sindical” deixou de trazer o bom povo comunista até à Alameda, em forte coreografia vermelha a ditar palavras de ordem muito parecidas às que ouvíamos há quarenta anos. Entretanto, já tinha havido a liturgia de Abril, mas por conta dos “pais da pátria” confinados ao parlamento. Agora, maio operário, não podia ficar para trás a retórica das “justas lutas” do povo trabalhador a cerrar fileiras contra os desmandos do capital, que procura — comunicado da Inter — no surto epidémico “a justificação para o regresso ao passado, para a reintrodução do totalitarismo” e para criar de novo um tempo de “mordaças” e de “unanimismo”.
Ou seja: não há vida para lá da “luta de classes”. Em tempos de crise sanitária, sobeja o anacronismo (ritual e de linguagem) de quem vê a política e a sociedade pelo canudo da velha ideologia — o que pode não ser uma calamidade menor.
Eis senão quando, 13 de maio à vista, se torna inevitável a comparação do ajuntamento da Alameda com o que poderia acontecer no Santuário. Parece que o governo iria emitir um “nim”, secundando sinais contraditórios que já dera naquelas duas datas, face às diretrizes nacionais de Saúde (assumidíssimas pelo povo português). Mas, rapidamente a Igreja toma posição clara pela não peregrinação ao Santuário, em coerência com a sua prática desde o começo da pandemia, esvaziando assim calamitosas polémicas: pois os cortesãos do estado “republicano, laico e socialista” não perderiam a oportunidade de recuperar a trilogia “salazarista” dos três éfes, para mais quando já estão a salivar com a “emergência” que — finalmente, dizem eles —confinou “a religião e os padres”... à sacristia!
O arcaísmo português vem de há muito, e estendeu a sua calamidade profunda até aos alvores do que chamam de modernidade: um país antigo, pobre, devoto e obediente, profundamente iliberal, sempre aconchegado a salvadores de ocasião que, amestrados por dogmas e preconceitos, sem pudor usaram a plebe para chicoteá-la com os amanhãs que cantam. Lembro-me bem dos anos de brasa do PREC e das aparições messiânicas do “grande camarada” nos comícios do 1.º de Maio e quejandos, para “quebrar os dentes à reação” e com os olhos fitos na suposta aurora socialista igualitária, sem servos nem amos. E o povo, carne para canhão do aparelho comunista instalado no Estado e nos mais diversos corpos intermédios, lá foi a muito custo acordando — muitos sem terem percebido, ainda hoje, a mudança irrefreável dos últimos trinta anos, quando todo um mundo novo, de propostas e de linguagens, vem desafiar-nos face ao futuro do viver comum.
Para lá da crise pandémica, são várias as etiologias do estado de calamidade estrutural que nos submerge em crise permanente. É preciso ver a luz ao fundo do túnel? Sim, naturalmente, mas é preciso, também, viver e perceber o túnel, para chegar à luz.