Do Estado
Deus queira que me engane, mas penso que, a partir de hoje, vai andar muita gente por aí. É que agora o confinamento deixa de ser obrigatório. É uma questão de civilidade
1. Livro: “O Caminho da Servidão” é o livro mais conhecido de Friedrich Hayek. Economia, política, sociologia e uma análise aos diferentes modos de pensar do socialismo, é o que se pode encontrar nesta obra. Hayek é um dos maiores pensadores do liberalismo. É imprescindível lê-lo, para que se entenda esta corrente de pensamento. E este é um bom livro, para começar.
2. Disco: Por mero acaso tropecei em “Miss Colombia”, de Lido Pimienta. Não conhecia e tem sido um prazer. A colombiana faz uma feliz mistura de latinidade com modernidade. Cúmbia, instrumentais etéreos e sonhadores, sintetizadores e ritmos electrónicos. Excelente descoberta.
3. Nos últimos tempos, e a propósito da crise pandémica e das suas consequências económicas, muito se tem falado do Estado. Não a considerando definitiva, gosto muito da definição que Russell Kirk lhe deu: “O Estado é a instituição necessária à realização da natureza humana e ao crescimento da civilização, cuja ‘função primária’ é a ‘restrição’”. Isto é o que aceitamos, em doses q.b.. O que temos é uma estrutura paquidérmica, resultado de um avanço arrasador do Estado sobre as esferas da vida individual e da actividade económica.
Começo por reafirmar o que aqui já escrevi inúmeras vezes: um liberal não defende a extinção do Estado. Um liberal gosta de pensar o Estado, reconhecendo-lhe a necessidade. Mas ao contrário de outros, os liberais recusam-se a adorar o Estado como o se este fosse o centro de tudo. Um liberal acredita na autonomia das pessoas e das instituições.
O Estado é um arranjo complexo, resultado de uma maleabilidade social e geracional, que não deve ser tratado por pseudo-revolucionários de ocasião, como se de um brinquedo de criança se tratasse. O Estado, em mãos caprichosas, torna-se arrogante, manipulador e tende ao totalitarismo.
Um Estado sustentado na divisão horizontal de poderes: legislativo, executivo e judiciário. Onde o sistema de “checks and balances” funcione fazendo com que cada um dos ramos da árvore tenha os seus poderes verificados pelos poderes dados aos outros dois. Mais: um Estado que tenha, também, uma “separação temporal de poder” de modo a desenhar a necessidade de limitar-se no tempo o seu exercício pelos agentes públicos; uma “separação vertical de poder”, que comporte a divisão territorial de competências; e uma “separação social de poder” que qualifique e verifique a divisão de poderes entre comunicação social, ONG’s, partidos, associações e outro género de entidades com intervenção na sociedade, podendo todos recorrer ao poder estatal em condições de igualdade.
Olho para o Estado como Burke e Ortega y Gasset: nunca abdicando dos princípios, mas respeitando o tecido social e as circunstâncias que o determinam; olhando para o passado tirando daí as ilações necessárias para gerir o presente e perspectivar o futuro; procurando entender o papel de cada um dentro do edifício social; abraçando o reformismo; rejeitando qualquer forma de despotismo e de totalitarismo; evitando que se arrasem os equilíbrios construídos. O Estado não pode ser mais forte do que a sociedade e é a esta a quem compete não deixar que isso aconteça.
Estado e lei são coisas diferentes. Nem o Estado é a lei, nem a lei é o Estado. Como tão bem explicou Bastiat quando escreveu que há que avaliar as relações da lei com o Estado e de que maneira este abusa desta para subverter e expandir, além dos limites, as suas funções. O Estado, que somos todos nós, obedece e sustenta-se no “primado da lei”. Lei que tem como razão principal a de ser a defesa da individualidade, dos direitos, da integridade, da liberdade e da propriedade. Inclusive, a defesa do próprio Estado, quando este se excede com a desculpa, muitas vezes, da imposição da vontade da maioria. Conforme Scruton, “é de enorme importância que se criem condições em que a protecção é oferecida ao dissidente e a discussão racional entre os antagonistas é defendida com unhas e dentes”.
Ao Estado não compete a determinação da economia. Pensar que é ele que cria riqueza, ao invés das pessoas e das empresas, é um verdadeiro absurdo. Deve, isso sim, regular pouco, no sentido de obviar a ganância e o abuso, e fiscalizar muito. A dicotomia, que os socialistas pretendem criar, entre o mercado livre de um lado e o estatismo do outro, é ridícula. A haver uma dicotomia, esta terá de ser sempre entre os que defendem um Estado pequeno, forte e que vê em cada um de nós a sua individualidade e capacidade de decisão, e os que entendem o Estado como uma entidade que decide tudo por todos, altamente metediço, burocratizado e de estrutura monstruosa.
4. Zhuangzi, Proudhon e Hayek, são alguns dos que defendem que há uma certa ordem espontânea no viver em sociedade. Isso assusta aqueles que vêm no Estado o decisor mor, o todo sapiente. Essa ordem espontânea, foi-se burilando com o tempo, é intrinsecamente evolutiva. O modo como interagimos socialmente, o aparecimento do dinheiro, a língua com que comunicamos uns com os outros, o próprio Estado, etc., são o resultado de uma necessidade que surgiu espontaneamente. Não foi determinado por ninguém. A organização humana é uma coisa natural e que depende de cada um. O Estado é uma necessidade, que só pode existir apoiado na livre cedência de alguma liberdade, por parte daqueles que o integram. O contrário, ser o Estado a decidir daquilo que lhe concedemos, não é admissível.
5. Ora bem, o comércio já pode abrir. Mas mantém-se uma espécie de confinamento induzido pelo teletrabalho e com a função pública (Estado, o maior empregador) a funcionar a pouco ou nenhum gás. O mesmo se passando com os trabalhadores dos sectores do turismo e da restauração, o que perfaz uma esmagadora maioria de pessoas com o dever, agora cívico porque não obrigatório, de ficar em casa.
Abrem os Centros Comerciais, o que é bom para que estes possam cobrar as rendas por inteiro aos lojistas, mas depois não há quem faça compras, por causa do confinamento. Se o cumprirem, claro.
Abrem os cabeleireiros, obrigando à marcação prévia e ao uso da máscara pelos intervenientes. E fico sem perceber como é que me vão acertar o cabelo à volta das orelhas.
De modo geral, restaurantes e cafés vão continuar fechados. Isto de ir às compras ou trabalhar e não poder beber a bica é uma soda...
Isto é um abrir... não abrindo.
6. Deus queira que me engane, mas penso que, a partir de hoje, vai andar muita gente por aí. É que agora o confinamento deixa de ser obrigatório. É uma questão de civilidade.
7. Vi esta semana um responsável governamental por uma secretaria, com um ar muito satisfeito, sorriso no canto da boca, a se congratular por uma operação de apoio financeiro estar a correr bem, a se parabenizar por se ir verificar endividamento. Eu acho dramático que, em 24 horas, mais de 2 mil empresas tenham recorrido a esta operação de crédito e, ao fim de uma semana, sabe-se lá quantas mais o fizeram. Mas isso sou eu, para quem a festa só deve ser feita quando vivermos com os nossos recursos e não precisarmos de pedir nada a ninguém!
8. A Assembleia Legislativa da Madeira fez aprovar uma alteração ao seu regimento que permite que o sentido de voto de cada grupo parlamentar seja determinado por um único deputado. Isto é um dos maiores atentados à democracia que a Autonomia viu. Os responsáveis têm nomes e estão sentados nos grupos parlamentares do PSD e do CDS. Que o futuro os responsabilize.
9. No Primeiro de Maio, a CGTP comemorou a data, como sempre, na Alameda, em Lisboa. Mostram as fotografias de uma comemoração muito à moda da Coreia do Norte. Perguntam alguns qual a justificação de se autorizar isso e não se permitir, o 13 de Maio, em Fátima. Para mim, tanto uma coisa como a outra são iguais. São questões de fé!