A récita do liceu
Tínhamos lutado muito para sobreviver à adolescência, o que nunca é fácil e fica mais complicado quando falta quase tudo para ser popular.
Um burburinho de adolescentes impacientes compensava as cadeiras vazias que, naquele ano, ninguém quis saber da récita do liceu. Só a Raquel e eu que, em 1988, fazíamos a dupla típica das amigas da escola, daquelas que aparecem aos pares em todos os sítios: na esplanada, na praia, no intervalo das aulas e na matiné do cinema. Lembro-me de que a Raquel arranjou maneira de se desembraçar dos óculos redondos e eu usei a imaginação para não parecer a miúda do Laranjal, mas, no conjunto, as circunstâncias jogavam todas contra a gordinha com roupa feita em casa e a baixinha caixa-de-óculos.
Tínhamos lutado muito para sobreviver à adolescência, o que nunca é fácil e fica mais complicado quando falta quase tudo para ser popular. E não há, entre o céu e a terra, maior ambição para alguém com 15, 16, 17 anos do que ser popular, admirado e venerado. É uma chave para o amor, para entrar nos grupos mais cool, para não ser esquecido e estar sempre na lista das festas, dos passeios, mas esse não era o caso. Com 10 quilos a mais e as roupas esquisitas dos saldos, foram vários os momentos em que morri de vergonha e quis ficar invisível como quando a minha mãe me deixava na porta das lojas a guardar os embrulhos. O cúmulo era ficar na porta da Casa Paris, ao lado da montra onde os soutiens e as cuecas de renda espreitavam para fora das caixas e, na rua, passavam rapazes mais velhos e bonitos. Nenhum deve ter memória da rapariga gordinha com meias de algodão pelo joelho, ninguém fixa isso. E, de uma certa maneira, eu sabia o que era não contar para a história.
É disso que fala o poema, da insignificância da nossa existência perante a natureza, das forças que a fazem mover, mas, claro, aos 17 anos, eu corria para ter importância e por isso decorei o poema e fui à prima Lídia fazer uma saia de pregas de fazenda azul escura para combinar com uma camisola às riscas com botões de marinheiro, na qual empenhei todo o meu dinheiro. O palco do ginásio do liceu esperava por mim e mais aquele coro desafinado que o professor Inácio tinha ensaiado durante umas três semanas, depois das aulas. Daquelas vozes, escapava a Raquel que, nesse tempo, sabia tudo de música pop e tinha um poster do Limahl. O que era estranho, mesmo para os padrões de 1988.
Lembro-me de ter fantasiado com o ginásio cheio, imaginei que pudesse estar a malta cool para ver aquele meu momento, ali, a declamar um poema sobre o sentido da vida como se fosse um Mário Viegas de saias, mas havia muitas cadeiras vazias e o burburinho de adolescentes inquietos, entre as borbulhas e as hormonas, ansiosos por se verem livres da escola e sem qualquer interesse em ouvir poesia e Zeca Afonso que, por aquela altura, caía em desuso. O país virava a página, nós estávamos prestes a fazer o mesmo e a seguir caminho fora dali, tínhamos sonhos, planos vagos, mas dessa tarde cinzenta e sonolenta de Junho trouxemos promessa de que, fosse como fosse, seríamos sempre amigas.