«Às vezes as crianças gritam sobre flores isoladas dentro delas»*
Em Portugal, e segundo o relatório anual da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), de 2019, 1473 crianças foram vítimas de maus-tratos
Quando estacionei no meio de um conglomerado de apartamentos, a cortina de uma das janelas do rés-do-chão foi arredada e pude ver a curiosidade de um menino encostada à janela.
Não sei mais nada sobre a curiosidade deste menino que parecia querer pular a janela do confinamento. Não sei se é uma das muitas crianças e adolescentes a quem a Secretaria Regional de Educação recusou continuar a providenciar uma refeição quente numa altura em que muitas famílias têm a despensa vazia. Não sei se é uma das 945 crianças que a Secretaria Regional de Educação disse não precisarem de equipamentos digitais para continuarem a ter acesso à educação.
Este menino que vi à janela e que apenas parecia melancolicamente curioso, vi-o antes da história da menina que se perdeu por detrás de outras cortinas, mais densas, feitas de gritos e sufoco. Nunca vi a Valentina à janela, mas tivesse visto e certamente não teria conseguido vislumbrar o que se passava. Esse é o tipo de (re)conhecimento que requer tempo, confiança. O tipo de reconhecimento que uma professora, uma auxiliar, um assistente operacional, um conselho de turma, os amigos, as colegas podem fazer perante os sinais de alarme. Por detrás das cortinas fechadas do isolamento (que se mantém para as crianças dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos) quantas crianças estarão desde março entregues ao estômago vazio, à negligência, ou a familiares que apenas conhecem a violência como forma de descuidado, de desamor?
Em Portugal, e segundo o relatório anual da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), de 2019, 1473 crianças foram vítimas de maus-tratos, uma média de 28 crianças por semana, quatro por dia. 61,9% destas crianças são meninas, com uma média de idades de 11 anos. Em 27,3% dos casos, a pessoa agressora era o pai ou a mãe. De salientar que estes números representam o universo de casos sinalizados e seguidos pela APAV, já que o Relatório Anual de Segurança Interna de 2019 só tem apresentação prevista para dia 30 de junho; mas se recuarmos ao relatório de 2018 o número de vítimas com idade inferior a 16 anos foi de 3919 crianças e jovens. De registar também as 9697 crianças e jovens agredidas em contexto de violência doméstica (e que não eram o alvo principal), no período compreendido entre 2014/2018. Todos estes dados são de um tempo em que grande parte destas crianças não estavam dependentes apenas do espaço familiar e por isso a possibilidade de deteção de maus-tratos e/ou negligência era muito maior porque frequentavam a escola. Sublinhe-se que a sinalização destes casos é maioritariamente externa porque as crianças tendem a não denunciar, porque aprendem desde cedo que a violência que lhes é infligida é uma forma de educação e de merecida punição pelo mau comportamento, e porque as pessoas agressoras são também as pessoas que amam.
Com as medidas de isolamento social perdemos um dos elos mais importantes na prevenção e deteção de situações de risco; por outro lado, aumentou o potencial de risco, porque a vulnerabilidade financeira que atingiu muitas famílias aliada à partilha do mesmo espaço durante 24 horas por dia contribui para o aumento de frustrações e potencia situações de conflito. Exatamente por isso, a ONU alertou para a «epidemia escondida» da violência doméstica, que afeta também as crianças.
No primeiro debate realizado na Assembleia Legislativa Regional durante o Estado de Emergência o líder parlamentar do PS manifestou preocupação relativamente a este possível aumento dos casos de maus-tratos e negligência e questionou o Vice-Presidente do Governo Regional quanto a medidas para prevenir ou minimizar o problema; o Vice-Presidente respondeu que havia sido criada a linha de apoio à criança para minimizar os riscos de infeção pela Covid-19, orientada para pais/mães/pessoas cuidadoras, e que obviamente não tem que ver com a criação de medidas para minimizar a possibilidade do aumento de maus-tratos a crianças. Obviamente que o trabalho das CPCJ continua, mas para poderem trabalhar tem de haver primeiro a sinalização. E não houve qualquer campanha no sentido de sensibilizar e alertar a comunidade para sinais que podem indiciar maus-tratos. Portanto, depreende-se que, desde há dois meses, as crianças da Região cá andam à conta de Deus.
O isolamento social e as suas consequências acontecem quando passam 31 anos sobre a «Convenção Sobre os Direitos das Crianças» (Nações Unidas, 1989), um tratado internacional que reconhece as crianças como sujeitos dotados de direitos civis e políticos, económicos, sociais e culturais, e que vincula juridicamente os 196 Estados que a ratificaram. Também a «Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021)» estabelece o compromisso dos Estados-membros tornarem os direitos fundamentais uma realidade para todas as crianças e identifica cinco áreas prioritárias: direito à igualdade de oportunidades (1), direito à participação (2), direito a uma vida livre de violência (3), direito a uma justiça amiga de e para todas as crianças (4) e direitos em ambiente digital (5).
Em tempos de pandemia é imperativo delinearmos uma estratégia com especial atenção a três destas áreas prioritárias: combate à pobreza infantil e a todas as exclusões e discriminações que implica, nomeadamente a forma como compromete o acesso a uma alimentação condigna, à saúde e a um processo educativo de sucesso; criação de mecanismos de deteção do risco de violência a que as crianças estão expostas (e cujas consequências comprometem a sua saúde física e mental, a curto e a longo prazo). Por último, por um lado zelar pelo acesso às plataformas digitais porque o acesso à educação dele depende, mas é também importante criar mecanismos de proteção relativamente à autoexposição e possíveis abusos sexuais ou situações de cyber-bullying.
Desde que vi a curiosidade do menino à janela e lhe pressenti a vontade de a saltar que tenho pensado que refletimos pouco sobre a vida difícil que as nossas crianças têm tido desde há dois meses. E ainda menos falamos das que estão em casa entregues à sua sorte porque mais ninguém lhes vale.
* Herberto Helder