Os dias do vírus (VII)
O COVID-19, o coronavírus, o vírus da China, deixou de ser uma doença e passou a ser um espectáculo. O único que resta. É a nossa Fátima, o nosso Futebol e o nosso Fado, é a nossa Política e o nosso enfado.
27 de abril
Oito da noite. O pivot das notícias continua convencido de que está a narrar o Gladiador. Uma sinfonia insofrivelmente épica faz as honras do discurso homérico que encerra – pela septuagésima sétima vez – o telejornal. Neste dia 77, igual a todos os outros, a vida continuava a ser um reality show com um único concorrente: COVID-19.
Alguma coisa, porém, estava diferente. Aquela esfera com antenas no canto da TV – um ídolo, um sol, cujos raios sagrados e pestilentos nos fulminavam com ordens e trabalhos – ganhara o meu hábito e insensibilidade. Pareceu-me, pela primeira vez, um objecto frouxo, corriqueiro, trivial, um brinquedo de criança ou cachorro. Um pretexto para as coisas, e não a causa delas
O COVID-19, o coronavírus, o vírus da China, deixou de ser uma doença e passou a ser um espectáculo. O único que resta. É a nossa Fátima, o nosso Futebol e o nosso Fado, é a nossa Política e o nosso enfado.
Todos os dias somos bombardeados com teorias sobre o corona. Os especialistas sucedem-se, sucessivamente acreditados por Harvard, Oxford, o Imperial College, e os instintos do Zé; sucessivamente desacreditados pela falta de especialização noutra coisa qualquer. O que é que o epidemiologista sabe de economia? E o que é que o economista sabe de gestão hospitalar? E o que é que o médico sabe de política internacional? Não devíamos antes dar ouvidos aos matemáticos e cientistas de dados, ao desgosto com os testes, com a falta de testes, que lhes arruína os modelos perfeitos de uma sociedade perfeitamente testada e abastecida de testes?
Somos uns desgraçados. Procuramos ainda o especialista último, esse Homem (ou Mulher) do Renascimento, que muito cientificamente nos aliviará de uma escolha que evitámos por ser moral. Pedimos da Ciência o que a Ciência não pode dar, que é um critério de escolha de vítimas e de males.
Longe do brinquedo e das laudatórias notícias que o rodeiam, a Economist calcula que o apoio alimentar para países de Terceiro Mundo se reduza para metade em 2020. Em Portugal, Isabel Jonet faz um retrato sinistro dos efeitos desta Grande Suspensão, que levou a classe média e média alta aos balcões do seu Banco Alimentar. Médicos alertam para quebra acentuada nos diagnósticos, e a polícia para aumentos nos assaltos a lojas e fábricas.
O COVID-19 deixou de ser o que é, e passou a ser o que fizemos dele: um símbolo, uma desculpa, uma simulação. É a fachada, o verniz, um estrato de enganos e de mentiras que vamos admitindo a bem de uma convivência progressivamente mais frágil, e que se sustenta na convicção mais ou menos imposta de que os mortos e infectados são as únicas métricas do desempenho de um Estado ou de uma Região.
Mas o COVID tem um contexto, e um mundo que vive e vibra independentemente dele. Morre-se daquilo em que não se pensa. Não temos pensado em mais nada.
28 de abril
O Governo concertou a continuação do campeonato nacional de futebol com os presidentes do Porto, do Benfica, do Sporting e da Liga de Clubes. A presença arbitrária do 1.º, 2.º e 4.º classificados não se estranhou nem censurou. A interrupção dos campeonatos inferiores, enquanto o principal continuava, também não. É natural. A cultura dos “três grandes” é uma cultura de inércia, vassalagem, e conformada pequenez. Combatê-la implicaria chatice, responsabilidade e emancipado risco, exactamente o que o português evita, ou julga evitar, quando jura obediência a um “grande”. O adepto prefere a participação passiva na glória alheia do que a construção activa de uma honra própria. O Primeiro-Ministro descobre, aqui, uma afinidade com o seu ofício, e descobre-a com toda a razão. O futebol, em Portugal, é um derivado do poder, e o poder tem horror a vazios, como os que resultariam de um campeonato imprevisível, competitivo, e materialmente imparcial.
A convocatória a São Bento não foi mais uma excepção de um tempo excepcional. Foi a consagração da farsa que o futebol nacional sempre foi.
29 de abril
Bolsonaro diz que “Sou Messias mas não faço milagres”. Trump prossegue na cruzada contra a China e OMS, e diz ter provas de que o vírus se originou num laboratório em Wuhan. São imprudentes, ridículos, e logo ridicularizados.
Do mesmo passo, elogiam-se os líderes intermédios, desde os Governadores estaduais a Anthony Fauci, Director do Instituto de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos. Na CNN, tecem-se loas aos líderes dos países com melhor resposta ao COVID-19, notando-se que grande parte são mulheres.
Os media e a opinião pública procuram pois uma correlação entre desempenho pandémico e liderança política. Vão culpando Trump, Bolsonaro, Boris, os suecos, iranianos e bielorrussos, como se o COVID-19 progredisse matematicamente, num vácuo homogéneo e previsível, e como se nesses países não concorressem outras sensibilidades e fontes de autoridade.
Entretanto, vamos compreendendo que os números absolutos não explicam tudo. Que vários países têm, de facto, uma evolução muito semelhante no crescimento e redução das infecções, independentemente do grau e oportunidade do seu confinamento obrigatório. E que factores como a distribuição geográfica, a demografia, a qualidade do ar, a cultura, o estilo de vida, e a saúde da população desempenham um papel.
Não é uma defesa de Trump ou de Bolsonaro, que se portam lamentavelmente. Nem é um ataque às senhoras primeiras-ministras, que têm sido inatacáveis. É a constatação de que os fenómenos naturais escapam às nossas categorias narrativas. Procurar no COVID a confirmação das nossas preferências políticas envolve um risco – alto e perigoso – de a realidade não obedecer a essa ficção, e de a desfeita criar capital de queixa para uma vitimização.
O Mundo precisa de factos. Não se pode ser sério só quando convém.
1 de Maio
A Alameda enche-se de manifestantes socialmente distantes, que festejam o Primeiro de Maio junto da Fonte Luminosa. A concentração foi autorizada como excepção ao Estado de Emergência, com o patrocínio de todos os órgãos de soberania. Entenderam que esta festa popular, em território histórico, devia prevalecer sobre o risco de contágio.
A propósito de críticas à arbitrariedade do Estado de Emergência, António Costa declarou, entretanto, que o “confinamento é para manter diga o que disser a Constituição”, que os juristas tinham uma espantosa “capacidade de inventar problemas”, quando “a realidade da vida é muitíssimo mais prática”.
Sucede que daqui a duas semanas, já depois de levantado o Estado de Emergência, António Costa tem milhares de cidadãos prontos para se dirigir a Fátima em peregrinação. Cidadãos iguais aos que compareceram na Fonte Luminosa, que reclamam para o dia 13 de Maio o exercício do mesmíssimo direito – de reunião – que o Estado admitiu para o dia 1.
Qual foi o jurista que lhe inventou este problema?