Este bocadinho que falta
Estou aqui com um nervoso de criança, aquele que dava antes do passeio da escola, já nos últimos dias de aulas, quando nos metíamos em autocarros e nos levavam a ver a quinta do Santo da Serra e os vimes do Café Relógio. É mais ou menos o mesmo agora que o desconfinamento começou. As lojas abrem todas na segunda-feira e essa parece a melhor notícia dos últimos 45 dias. Eu sei que vimos pessoas curadas, gestos solidários, empresas a mudar de ramo para fabricar o que era preciso, mas a ideia de ter mundo além de máscaras, álcool gel, médicos e peritos a explicar a curva da epidemia anima, anima muito.
Mesmo que seja pouco, um quase nada do que era a vida antes da doença, há de novo gente, pessoas de carne e osso a quem dar bom dia e com quem partilhar, nem que sejam apenas as histórias da Covid-19. E há pela frente um enorme desconhecido, que ninguém sabe como será esta segunda-feira, nem como estamos depois de seis semanas em casa, a remoer o medo da doença e a angústia de ficar sem emprego. Para muitos, o dinheiro foi-se, não deu tempo sequer, foi a frio. Num dia havia trabalho, no dia seguinte não.
Não sabemos quantos resistiram, nem quantos vão abrir as portas e não vai ficar tudo bem. A última crise mostrou que a onda, quando vem, é cega, leva todos: velhos, novos, torna a classe média pobre e os pobres ainda mais pobres. Quando começou a engolir empregos e a fechar lojas e empresas, vimos os estragos do desemprego nas pessoas, como lhes roubou a rotina, consumiu poupanças e roubou o orgulho ao ponto de as colocar na fila para arranjar comida. O abalo que provoca pode demolir até os mais fortes. Acho que se percebe, basta imaginar como será depender da caridade e de como pode calhar a qualquer um.
Segunda-feira teremos também uma ideia aproximada dos efeitos da quarentena na amabilidade, na capacidade de interagir, a ver se estamos recuperados da teoria de que os outros, todas as outras pessoas, são um risco, um transmissor de doença, uma ameaça. E, depois de semanas emboscados atrás dos ecrãs e em videoconferências, será o momento para avaliar se está tudo como deixamos quando nos trancámos em casa a ver se o pior passava. O encontro, o frente a frente terá a sua estranheza, mediado por viseiras e máscaras, regras para circular, tocar, mexer e sem aquela voltinha nas lojas só para descontrair.
E, apesar da incerteza, esta é a melhor notícia dos últimos dias, ainda que me faça falta o mar ou nadar 1.500 metros na piscina, mesmo que não possa convidar o meu pai para o almoço de domingo, que é quando montamos a mesa na sala e, com os pratos de sobremesa e as chávenas do café por levantar, estendemos a conversa pela tarde. E o meu pai, depois, fica a admirar os hotéis ou a falar dos arraiais de antigamente, quando era novo e vinha à festa da Penha de França. Para isso ainda não temos datas.
Mas há um sinal para recomeçar e estou com o nervoso de criança, tal e qual como quando íamos na excursão e eu sonhava que não chegava a tempo, que o autocarro começava a andar e não me levava no passeio a ver a quinta do Santo Serra e os vimes na Camacha, que não me deixava desafinar a cantar a “Primavera das Flores” com todos os miúdos da escola. E só parecia mesmo verdade quando acontecia.