Distopias
Deixámos de ter, faz hoje quinze dias, aquelas conferências diárias do “senhor Secretário” e da “doutora Bruna” (que os jornalistas tanto se esmeravam em saudar, num tique repetitivo, certamente muito “regional”). A nova fase é sinal de que o trabalho da Saúde foi bem feito e a pandemia não descambou na Madeira. Fica-nos, desses dias, a memória das reiteradas expressões “mundo covid” e “tempo covid”, que no auge da crise empurrava a muitos de nós para diante da televisão, numa espécie de “dever cívico”, com o ouvido atento e um vago sorriso sardónico a aguardar as últimas do tempo covid, porque estávamos (e estamos) num mundo covid...
A verdade é que a expressão ficou cunhada e ela tem o seu quê de “performativo”, como se diz na filosofia da linguagem: ela realiza aquilo que significa. Aqui, de forma comedida e sem alarme; massivamente e sem compaixão, à escala do mundo: inaugurando procedimentos, restrições, medos e quarentenas que julgávamos não ter de enfrentar mais, na escalada triunfante do capitalismo planetário, gigante com pés de barro que um vírus letal veio corroer até chegarmos às valas comuns dos cadáveres sem nome, e sem direito à piedade final!
E então começou a aparecer nos jornais a palavra “distopia” para caraterizar este “tempo covid”, opressivo nos seus confinamentos e obrigações estranhas, coagindo grupos humanos e nações inteiras à vivência sofrida da calamidade, toda a trama virulenta abatendo-se sobre a cidadania e as práticas felizes da sociedade aberta e convivial. Agora, dizem, vamos retomar uma anormal normalidade. Mas não é preciso ser cientista social, encartado ou aparentado, para perceber que esta espécie de “túnel do tempo” em que entrámos não vai ser de fácil travessia. E depois do tempo covid, nos supostos escombros do mundo covid — após os processos e comportamentos disruptivos e as obsessões controladoras que caraterizam o pesadelo das distopias — é para nós uma incógnita o rosto do futuro que podemos esperar. Ou mesmo sonhar.
Distopia (fora do lugar) está nos antípodas de utopia (o que ainda não tem lugar, mas se sonha alcançar). Várias são as narrativas exemplares dessas duas dinâmicas que atravessam a história humana: “A Utopia”, ou “A Cidade do Sol”, para referir apenas dois clássicos, um pouco na esteira da idealização platónica com a sua “República”; em contraponto, mais perto de nós, basta lermos “1984” ou o “Admirável Mundo Novo”, para sentirmos —na expressividade que só as grandes obras literárias transmitem — todo o poder opressivo da distopia e do inumano.
Em termos obviamente simplificadores, diríamos que a distopia resulta de uma “avaria” — ideológica, social e política — da utopia: as crenças milenaristas seculares que misturam a inocência do “bom selvagem” com a imposição das “longas marchas” para a sociedade perfeita, sempre descambaram — o século XX é disso trágico exemplo — em desumanas mentiras estrangulando sociedades inteiras. Ou tivemos ruína e morte a queimar os ideais iluministas da “liberté, égalité, fraternité”, ou as versões “virulentas” da pura raça ariana e da sociedade sem classes, utopias ardidas sobre um chão de muitos milhões de cadáveres.
No tempo covid, ainda não chegámos aí. Mas atenção: não faltam no mundo burlescos candidatos a ditadores, prontos a introduzir sérias avarias no sistema.