>
Crónicas

“Se podes ver, repara.”

À partida, o cordão sanitário terminará no fim do dia de hoje, mas as consequências da violência emocional irão muito para além destes 15 dias

Exatamente três dias depois da sinalização do 25 de abril, data que abriu portas a que o País se tornasse uma democracia, a maioria PSD/CDS apresentou e aprovou, na Assembleia Legislativa Regional, uma alteração ao regimento que subverte o princípio de uma democracia parlamentar tal como a entendemos: um/a deputado/a, um voto. Com esta alteração, que é permanente, “os votos expressos pelos deputados presentes serão contados como representando o universo do respetivo grupo parlamentar”, ou seja, mesmo que algum deputado ou deputada não esteja presente, o voto da bancada vinculará o voto da pessoa ausente – isto é, de uma pessoa que objetivamente não votou.

À boleia do distanciamento social, a maioria PSD/CDS fez uma alteração que desvirtua a representatividade parlamentar, passando por cima da complexidade que até aqui invocou para não adaptar à Região a Lei da Paridade de 2006 alterada em 2019 (só para dar um exemplo). Em resultado de toda esta súbita agilidade, a partir de agora, e na situação de estarem todos/as os/as deputados/as da oposição, basta estar um deputado do PSD e outro do CDS para que o seu voto conte por toda a bancada do PSD/CDS. Isto é, com dois deputados apenas, a bancada da maioria pode fazer aprovar o que quiser porque aboliu o princípio de que cada deputado/a tem um voto. A isto se chama sentido de oportunidade e esperança de que esteja toda a gente distraída para não notar a machadada na democracia parlamentar.

Já se sabia que o Vice-Presidente do Governo Regional não tem tempo nem pachorra para a “baboseirada” de prestar contas à Assembleia Legislativa Regional, conforme disse; já se sabia que para o Presidente do Governo Regional a Constituição é coisa para não ser levada a sério, como afirmou em conferência de imprensa. Agora sabe-se que, se não for conveniente a algum deputado ou deputada estar nos plenários em que se votam as propostas, não há problema. Arranjou-se maneira de blindar as votações e garantir que a maioria assegure o de sempre: chumbar as propostas da oposição, aprovar as propostas da maioria. Neste momento, o recurso ao Tribunal Constitucional é a única opção possível, após a tentativa vã de que imperasse o sentido democrático.

Vivi na freguesia de Câmara de Lobos uma grande parte da minha vida. Mudei para a freguesia do Estreito há 18 anos, mas as minhas raízes estão onde a maior parte da minha família materna reside, para além de pessoas amigas.

Desde 19 de abril que a freguesia de Câmara de Lobos – e as 17.986 pessoas que a habitam (Censos, 2011) – está cercada, resultante do aparecimento acelerado de 10 casos de Covid-19 numa zona central.

Permitam-me recuar à estranheza do dia em que foi anunciado o cordão sanitário. Porque foi o dia em que se anunciou um aumento brusco de casos e, paradoxalmente, o aligeirar das medidas de contenção com a abertura de alguns setores, sendo o mais impactante o da construção civil. Ao início da noite foi anunciada a implementação da cerca a partir das 00:00 do dia 19 de abril e com a duração de 15 dias. Nestas duas semanas – apesar do trabalho desenvolvido pelas autoridades e forças vivas do concelho para resolver os problemas resultantes do cordão – muitos/as munícipes viram as suas vidas complicarem bastante. Pescadores que saíram para o mar e a forma como foram destratados em vários portos. Pequenos/as empresários/as que têm o seu negócio fora da freguesia, e que já haviam assumido compromissos, viram-se na impossibilidade de os cumprir – perdeu-se trabalho e matéria prima. Residentes que estavam a trabalhar por turnos ficaram, de repente, do lado de fora do cordão, não podendo regressar a casa. Mas a situação mais surreal tem que ver com o protocolo adotado no Hospital Nélio Mendonça: todas as pessoas vindas da freguesia foram encaminhadas para a zona reservada ao Covid-19, mesmo tendo sido testadas (dois testes negativos), mesmo vivendo em zonas em que não havia registo de contaminação, mesmo pertencendo a grupos de risco (doentes oncológicos, pessoas idosas, parturientes...). O impacto sobre as pessoas foi grande.

À partida, o cordão sanitário terminará no fim do dia de hoje, mas as consequências da violência emocional irão muito para além destes 15 dias. As pessoas de Câmara de Lobos sentiram na pele que os discursos de ódio “endofóbicos” podem atingir – não apenas relativamente às pessoas do Continente (manobra de diversão de uma certa franja política) – mas pessoas de diferentes concelhos ou freguesias da Região. E se por um lado o sentimento de injustiça é grande, por outro o sentimento coletivo de pertença consolidou-se.

As redes sociais são espaços estranhos. Da mesma forma que são espaços de memória, de solidariedade, são também espaços de ódio e de manipulação. Nas últimas semanas tem sido também visível a forma como se tenta silenciar as vozes que não alinham por um único diapasão. Deturpa-se, manipula-se, ofende-se, deseja-se mal. É imperativo o debate franco e limpo em vez de fogueiras digitais.

Mas as redes sociais são mesmo espaços estranhos. Da mesma forma que são espaços de ódio e manipulação, são também espaços de memória, de solidariedade. Leio o relato de uma enfermeira do Hospital de S. Sebastião, em Santa Maria da Feira, sobre pacientes internados/as e que não recebem visitas por causa da Covid-19: “Enfermeira, diga aos meus filhos que fui enterrado em vida!” O medo da doença fez-nos esquecer todas as outras situações. As pessoas que estão nos hospitais, nos lares, que vivem sozinhas e enfrentam esse outro monstro, o da solidão. Ao pedido de solidariedade responderam particulares e empresas, que doaram tablets e telemóveis para que as pessoas nestas condições possam estar em contacto com as famílias. Por cá, a Associação OLHO.te desenvolve um projeto intitulado “Corações de Janela” e iniciou um movimento de solidariedade afetiva para com as pessoas que estão perto de nós. Se quiser saber mais vale a pena ver o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=eSVAk-n50ys

No meio da cegueira, há esperança.

Nota: O título desta crónica é retirado do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.

Fechar Menu