O futuro da autonomia
A habilidade política começa de novo a manifestar-se, agora que entramos numa fase mais avançada de desconfinamento. Foi muito tempo de unanimismo e de amorfismo partidário face ao medo imposto pelo novo coronavírus, que obrigou regiões e países a adoptarem medidas draconianas jamais colocadas em prática. O atordoamento provocado pela covid-19 pôs em suspenso a agenda política traçada para 2020, adiou congressos partidários e debates sobre temas fracturantes. Com o inevitável regresso da actividade económica regressam também ‘velhas questões’ e algumas quezílias. A recuperação económica da Região é uma tarefa hercúlea, que convoca público e privado na resolução dos vastíssimos problemas que já temos à porta, e que vai redundar num aumento exponencial do desemprego e da pobreza. Os indicadores disponíveis mostram essa dolorosa inevitabilidade, como consequência da paralisação económica a que fomos obrigados. São cada vez mais as empresas a requerer layoff e o número de trabalhadores abrangidos já roça os 45 mil! É muita gente, é muito rendimento a menos, é muito menos dinheiro a circular. Se há sectores que vão recuperar com relativa facilidade outros, especialmente os ligados à hotelaria, não.
As estimativas conhecidas apontam para a necessidade de mais de mil milhões de euros para que se revitalize a nossa frágil economia. E de onde virá esse dinheiro? Como é que uma região com as características da nossa vai resolver este desafio? Não sabemos. O que sabemos é que a Madeira, tal comos os Açores, está condenada a entender-se com Lisboa, com o Governo da República, com o Estado. Não há ‘terceira via’. Não é preciso ir muito lá atrás para ver as consequências práticas da berraria perpetrada anos a fio por Jardim contra o ‘inimigo externo’ e o Terreiro do Paço. De reivindicativo e defensor acérrimo da autonomia, passou a personagem desrespeitada por quase todos os governos centrais, especialmente os do seu próprio partido, o PSD. Só António Guterres e Sousa Franco lhe prestaram um grande serviço, reduzindo a zero a dívida da Região, desbaratado poucos anos depois e convertido no monumental buraco de seis mil milhões de euros, pagos com ‘língua de palmo’ até hoje.
Com o país a braços com uma crise sanitária sem paralelo, embrulhado na guerrinha António Costa/Mário Centeno e com o Presidente da República a olhar cada vez mais para o calendário eleitoral e a fazer de tudo para conseguir mais do que os históricos 70% obtidos por Mário Soares em 1991, ninguém faz por atender o telefone da Quinta Vigia em São Bento. Ninguém atende porque, tacticamente, o primeiro-ministro não quer abrir excepções com nenhuma região e porque não esquece que foi o ‘bombo da festa’ nas últimas eleições regionais, que deram uma vitória à tangente a Miguel Albuquerque. Depois disso todas as suas declarações sobre a Região foram de ataque ao presidente do Governo, que acusa de “inventar” problemas para justificar a sua própria inacção e de personificar uma “cópia defeituosa” do seu antecessor.
Jogos políticos à parte há problemas que carecem de resolução e de negociação Funchal-Lisboa. É preciso arranjar soluções que ponham termo a esta guerra surda, onde a Madeira não risca nem ganha nada, numa intermediação que podia ser liderada pelo Presidente da República, como disse e bem Miguel de Sousa. Nem Marcelo nem nenhum outro inquilino do Palácio de Belém se mostrou interessado nessa ‘empreitada’. Depois do ‘tsunami’ provocado pela covid-19 será o momento de relançar o debate em torno das autonomias regionais, que envolva o país numa discussão séria e frutuosa, alargada à sociedade civil, e que enterre de vez este pretenso contencioso que só nos prejudica. O Estado não pode virar costas às suas regiões, nem as regiões podem usar os governos centrais como bodes expiatórios das suas incapacidades governativas. De que serve as regiões terem poder descentralizado se não têm dinheiro e se quase tudo depende dos cofres do Estado? O desenvolvimento integrado do território não pode estar ao sabor das simpatias e de interesses partidários. Maturidade e sentido de Estado precisam-se.