Os dias do vírus (VIII)
4 de Maio
As pessoas precisam de se sentir superiores a um rebanho a que julgam não pertencer. E é precisamente esse sentimento que as torna parte do rebanho. O sentido de pertença existe, em parte, para fazer o contraste com esta ficção de destaque individual. Para prova competente desta máxima, basta tocar o La Bamba numa festa. Todos cantam “yo no soy marinero, soy capitan”, alheios ao paradoxo de dançar num convés sem tripulação.
Este sentimento manifestou-se, intensamente, nas visitas ao Madeira Shopping. As fotografias revelavam filas de trânsito, acumulações em corredores, crianças pela mão, clientes com máscara, clientes que não. Falou-se em abuso, causa de surto, na incúria de um povo desinstruído e bruto.
Mas o que aconteceu foi precisamente o esperado nesse dia de alívio e abertura, com o beneplácito prudente das autoridades regionais. Quem foi ao Madeira Shopping não quebrou, que se saiba, qualquer lei. Terá cumprido as indicações do Governo e as regras do Centro Comercial. Foi levantar uma refeição, comprar o que confinado lhe faltou, espairecer de uma casa de que legitimamente se fartou. E foi animar, com o seu dinheiro e presença, o negócio e o emprego que vai girando por lá.
Em algum dos dias do vírus, todos prevaricaremos aos olhos de uma lente censória ou perversa. Entre compras, praias, festas e jantares, todos cederemos à aparência da fraqueza, ao cansaço, e à contradição. A ida ao centro comercial pode ser ingénua, mas parte de um impulso de normalidade também virtuoso e necessário, sobretudo para quem tem mercadorias para vender e salários para pagar. Foi esse também o recado do Governo quando libertou o comércio. Suspeito, de resto, de que os peregrinos do Madeira Shopping não sejam assim tão diferentes dos seus críticos. As imagens partiram, afinal, de fotógrafos que também estavam lá dentro. Não se percebe, pelo menos bem, quais são marinheiros, e quais são capitães.
Tem um pouco de graça.
5 de Maio
Entretanto entrámos no detalhe. A máscara tem de ter filtro. E tem de ser TTD. A viseira (que a polícia usava ainda há dias) não chega. A minha máscara é melhor do que essa, foi 8 euros, mas é lavável, cola à cara e não cabe um dedo na bochecha.
É a Ciência que pede estes cuidados, estes inúmeros e infindáveis cuidados, para que a probabilidade de infecção passe de 1% para 0,8%. É sempre a Ciência. A ansiedade não tem nada que ver com isto. Aliás, as pessoas mais preocupadas com este tipo de coisa são geralmente as mais relaxadas e agradáveis no dia-a-dia.
Não são as mesmas que mandam tudo para trás nos restaurantes, nem as que pedem para dividir ao cêntimo, nem as que andam com quatro tipos de comprimidos na carteira ou no carro, nem as que estranham porque alguém não cumpre com um hábito esquisito que trazem de casa, nem as que estão contentes por a sociedade ter finalmente acertado o passo com este seu talento para estorvar a alegria com imperfeições tão inevitáveis como insignificantes. Não. É tudo normal.
Num tempo em que a aparência é uma forma de capital, a mesquinhez é um activo intocável e acima da crítica.
Em defesa destas obsessões, podem dizer-me que o Diabo está nos detalhes. Sucede que o problema é precisamente esse: um mundo sem perspectiva é perigosamente parecido com o Inferno.
6 de maio
Concluídas as tropelias do 1.º de Maio, a indignação dirige-se agora para o Festival do Avante. Compreende-se o ressentimento com a excepção sindical ao Estado de Emergência. Mas convém ser justo. O Avante é um festival de verão, mas não é só isso. E o que é, para além de um festival de verão, é um comício e uma festa política, com estatuto constitucional diferente do de um simples concerto. Eu também não voto no PCP. Mas compreendo que não posso exigir o cancelamento do Avante e esperar manter o Chão da Lagoa, a Fonte do Bispo ou o Pontal, ainda que com restrições. E compreendo também que um país sem reunião é um país sem oposição, e que a proibição de comícios por um Governo democrático é uma questão delicadíssima.
Já se sabe que os comunistas perdem a cabeça. Mas é imperativo que a continuem a perder sozinhos.
7 de maio
Ricardo Quaresma veio a terreiro a propósito de um “plano de confinamento específico para a comunidade cigana” proposto pelo Chega, e pôs André Ventura no lugar.
Compensa reparar que Quaresma é o Némesis, o adversário perfeito de Ventura.
Se um partido populista vive de uma retórica de oposição entre um povo íntegro e unido e elites corruptas e distantes, e de uma lógica em que o mérito, o acesso ao poder e ao dinheiro dependem de uma conspiração dessas elites, Quaresma é a prova de que essa conspiração não existe, ou pelo menos de que ela pode romper-se em liberdade. Nascido numa comunidade marginalizada, e longe de um berço que lhe assegurasse um destino ou sequer o vislumbre de uma subsistência, foi pelo seu esforço e talento que se tornou um ídolo popular e se fez campeão nacional e europeu.
Quaresma quebrou as barreiras que o populismo garantia serem intransponíveis.
O Chega, que sonha com um mundo de puros-sangue, não sabe o que fazer com um mustang.
8 de maio
O desconfinamento promete toda a sorte de recuos e incoerências. A frequência do espaço é provisória e condicional. Se a passagem do tempo anuncia medidas melhores e mais equitativas, as subidas nos infectados e os excessos da cibervigilância não auguram grandes liberdades, prevendo-se controlos com cercas, apps, drones e militares em todo o lugar remotamente aprazível.
A provação da abertura é de justiça, mas também de equilíbrio. A praia, o mar, a montanha, os desportos e as romarias são a contrapartida moral de uma certa pobreza. “Somos pobres, mas temos isto”. Os restaurantes, as festas, o Euro, os ralis, os bares, os arraiais, as praias abertas e disponíveis, as sombras frescas de serras transponíveis para lagoas estivais. Temo-los em directo, sem acrílico, sem senha, sem guarda nem fiscal, como testemunho vital de uma certa maneira – portuguesa – de ser. As regras, este ócio constrangido, mecânico, precário, regulado, convida à neura e ao desconsolo que o lazer se destinava a prevenir. Prosseguem os dias do vírus, e Maio – que era a sexta-feira do ano – chega-nos com a melancolia derradeira e irrecorrível de uma tarde de Domingo.
Tenho fé no calor e no cansaço da contenção. E na compreensão, talvez depois de raspado o tacho, de que não haverá economia sem alegria, e de que a vida, para ser protegida, precisa também valer alguma coisa. Não faremos destas coisas porque não há risco, mas porque o risco, bem vistas as coisas, pode até valer a pena.
Dizem que a tristeza não mata, mas a verdade é que faltam dados para responder. Portugal nunca teve um Verão triste.