Quantos são? Quantos são? Não sabia que eram tantos...
Estamos há tantos dias em casa que qualquer coisa que apareça de novo na nossa rua reveste-se de inquestionável importância. Estava eu a trabalhar quando pontualmente às 18 horas, não sei se para fazer concorrência ao boletim do IASaúde, ouvi começar a cantar numa rua transversal à minha.
Foram duas ou três músicas, uns aplausos tímidos, um tipo bem-disposto que resolveu alegrar a malta da zona onde moro.
Os dias passaram-se e este sábado o bom do vizinho, (carinhosamente falando), munido de um espírito de confiança amplamente maior do que o anterior, deu um concerto de quase uma hora. Saí do prédio à procura da voz. O homem, na varanda de um piso alto do seu edifício, de coluna e microfone e uma Bandeira de Portugal, dava música aos vizinhos, alegrava corações e preenchia um vazio que há muito por aqui andava e ninguém se havia apercebido.
Do meio da estrada, que por estes dias tem mais cães do que automóveis em andamento, vi pessoas que conhecia de outros lugares e nem por sombras imaginava que viviam a poucos metros de mim. Metade da Ajuda estava, de facto, de varanda ou à janela a apreciar o gesto altruísta do homem que nos arrancou aplausos durante uma hora, viajando de Rui Veloso a Xotos & Pontapés, Carlos do Carmo e afins. Nem sabia que vivia tanta gente naquelas janelas sempre fechadas e casas aparentemente sem vida.
Foi preciso um bicho mau para despertar o que temos de bom, foi preciso nos enclausurarem em casa para querermos vir à varanda ou simplesmente abrir as janelas. Éramos tantos que nem consegui contar.
Estávamos todos, confesso-vos, a apreciar o momento, quando um carro-patrulha passou na rua (os cães desapareceram atrás dos arbustos e os donos atrás deles) e abrandou a marcha. Como o cigano, pusemos um olho no músico e outro no polícia, que entretanto estacionou a viatura e tirou medidas à estrada. O homem tocava e as pessoas que nunca tinham ido à varanda, olhavam para todo o lado, até que a música terminou, o animador recebeu os aplausos e quando todos esperavam o início da próxima música, um dos agentes desatou a aplaudir virado para as varandas. Tive pena de não ter feito um vídeo para a posteridade, mas aqui fica a minha homenagem ao bicho mau. Posso não saber quantos são os vizinhos, mas conheci o melhor das pessoas da minha rua nestes tempos de quarentena. E até conheci o lado humano do bom do polícia (continuo a falar carinhosamente). Apesar de tudo, ainda mantém o bom humor que arrancou sorrisos e nos deixou a todos mais bem-dispostos do que se tivéssemos a ouvir o balanço do dia, porque depois aparece tudo na “net”, que não levamos para a varanda.