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Notas da quarentena, 1

Ainda é cedo porque vamos ter que continuar a lutar, a perceber, a mitigar mas, a não ser que sejamos suicidas a prazo

Da situação, pandemia, a primeira, verdadeiramente global, na era da globalização, se acreditasse no desenho inteligente, esta seria a personificação mais aproximada de um trabalho feito à medida. Infelizmente, esse desenho fez-se com o mais elementar daquilo que tão bem se conhece dessa entidade a quem nem se reconhece o estatuto de ser vivo, o vírus. A única novidade é a forma, as características que lhe dão vantagem na dispersão e, fatalmente para nós, os danos letais ou de grande severidade e incerteza para muitos dos que escaparem.

Da resposta, pouco se pode ainda dizer, apesar de tanta apreciação gratuita sobre a bondade ou inadequação do que se tem experimentado. Importa lembrar que ninguém tem experiência nem existe ainda qualquer manual de boas práticas para uma situação que, não só é nova, como ainda está a acontecer nas suas primeiras fases. Há, por isso, que confiar em quem tem a enorme e inédita responsabilidade de gerir a situação. Há que sublinhar a coragem, entrega e trabalho de todos os que estão na linha da frente neste combate e todos os que, na rectaguarda, garantem que o essencial da nossa vida em comum é salvaguardado, que o abastecimento é mantido e que, com isso, possamos manter a esperança no futuro. Difícil, duro, incerto mas sim, haverá futuro.

Que futuro?. Ainda a quente, e sem saber como isto irá acabar, a que custo e em que condições, há quem insista na necessidade de salvaguardar a economia. Pergunta-se, qual economia? A mesma que nos trouxe até aqui e que aparenta não ter sido capaz de nos dar as garantias que hoje tanto procuramos, relativamente à capacidade de resposta dos sistemas de saúde?. E que dizer sobre a segurança (para não falar da justiça) do emprego? É razoável defendermos uma economia que numa crise como esta promove milhões de desempregados enquanto as bolsas continuam todos os dias a transacionar?. Já alguém parou para pensar sobre quem tanto transaciona num momento como este?.

Vivemos um momento de enorme desastre. E todos sabemos que não existem desastres naturais, é bom lembrar isso. Aquilo a que chamamos desastres naturais, não passam de acidentes enquanto os desastres, esses sim, têm sempre a mão humana. A mão humana na doença COVID-19, provocada pelo SARS-CoV- 2, não tem a ver com qualquer manipulação ou congeminação sobre o agente em si. A mão humana falhou sim na forma como nos expôs a esta situação, na forma como o nosso modelo de desenvolvimento e estilo de vida se transformou sem olhar a questões básicas, a riscos e vulnerabilidades agora tão evidentes. A concentração oligárquica da economia global e o desmantelamento de sistemas produtivos locais, com base em financiamentos e subsídios para não se fazer, não implicou apenas desequilíbrios ambientais, bem evidentes nas questões das alterações climáticas. Quem decidiu que a mera produção de luvas e máscaras deveria ser deslocalizada para a Ásia, porque é mais barato, à conta de poupanças em salários, e as consequentes maravilhas da competitividade, não se terá lembrado que essa poupança (ou ganância), como agora se vê, não chega para cobrir os custos que todos vamos ter que pagar.

Ainda é cedo porque vamos ter que continuar a lutar, a perceber, a mitigar mas, a não ser que sejamos suicidas a prazo, não se vislumbra como se justificará recuperar a economia, esta economia, que nos trouxe até aqui. Precisamos de outra, que não só reponha muito do que formos perdendo nas últimas décadas mas, que igualmente seja capaz de reparar parte dos incalculáveis danos que serão contabilizados, assim que possível. Sem contar com os danos irreparáveis, relativos às perdas de vidas que, espero, possam servir para motivar uma nova moral económica na qual o sentido da sustentabilidade não se restrinja à doutrina da folha de cálculo.

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