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Crónicas

O que faz falta

1. Livro: “Vozes de Chernobyl”, de Svetlana Alexievich, a Prémio Nobel da Literatura que esteve quase a vir ao Festival Literário da Madeira de 2017. O ter visto a série sobre o acidente nuclear aguçou-me a curiosidade de querer saber mais. E este livro é um bom complemento.

2. Disco: “Gigaton” é o 11º trabalho dos Pearl Jam. Saiu bem no final do mês de Março e mostra uma certa tentativa de reinvenção, sem sair do que os caracteriza. Não há ali nada que espante, no entanto, soa tudo muito bem.

3. Nestes tempos de confinamento entretenho-me com a televisão, aonde vou papando séries e filmes; vejo os primeiros dez minutos dos noticiários porque depois é quase sempre mais do mesmo; leio bastante; converso com a cara-metade e com a filha, fazendo o mesmo com as outras filhas e restante família, por telefone ou em animadas e divertidas cavaqueiras usando as ferramentas informáticas disponíveis. Embora separados e sem a possibilidade do toque, do estar, sinto que cada vez estamos mais unidos. Se calhar faltava-nos este tempo, um tempo onde temos “tempo” para a apreciação, para o gostar, para o amar. Do mesmo modo que só sabemos o que é o “bem” se conhecermos o mal, só percebemos o que é o certo se soubermos o que é o errado, esta época estranha deu-nos “o fazer falta” para melhor apreciarmos o que temos, muitas vezes, por garantido.

4. Uma das séries que vi, foi sobre o desastre nuclear de “Chernobyl”. Uma série que trata de muito mais do que o sucedido, pois mostra o que é a incúria, o resultado de uma enorme sucessão de mentiras, a incompetência, a estupidez. Perante o catastrófico acidente, as autoridades soviéticas recusaram-se a admitir os seus erros e essa relutância teve terríveis consequências.

Numa das cenas mais marcantes da série, um alto responsável político, nada mais do que o Ministro da Indústria, vai falar com mineiros de quem precisa para tentar debelar o incêndio na central nuclear. Confrontado com uma pergunta simples, responde de modo inacreditável: “não me disseram, porque não preciso saber”. Era assim que funcionava a União Soviética: quanto menos souber, menor é a minha responsabilidade.

O socialismo soviético funcionava apoiado em planos quinquenais decididos por burocratas que não tinham a mínima ideia sobre o que estavam a decidir. Acertavam necessidades e exigiam quotas de produtividade. Como tudo isto era alcançado era pouco importante. O que interessava é que o resultado no papel, no final, fosse o determinado. Estaline ensinou cedo que a mentira era preferível à execução. Para calar, e ter preso com rédea curta quem executava as ordens recebidas, criou-se uma teia de promoções que permitiu aos mais incompetentes subir aos cargos mais altos, mandando, muitas vezes, para o Gulag os que se atreviam a dizer que “o rei vai nu”.

Chernobyl não foi um erro operacional. Foi, isso sim, um enorme erro de Estado. Para além do urânio, há outro material altamente radioactivo que percorre toda a série: a incompetência, que aliada ao princípio do “ser mais barato”, cria uma fórmula explosiva. Reactores nucleares que não tinham redomas de contenção, que não tinham combustível enriquecido nos seus núcleos, que usavam grafite e água, para fazer o necessário arrefecimento. Tudo feito em cima do joelho porque era mais barato. Isto fez com que não estejamos em presença de um acidente, mas de uma verdadeira bomba nuclear.

Em Pripyat fica demonstrado à exaustão que a URSS era a pátria de um socialismo miserável.

Claro que haverá por aí opiniões discordantes da minha e daquilo que a série demonstra. Como já referi, também fui ler “Vozes de Chernobyl”, da Nobel da Literatura Svetlana Alexievich. E as coisas batem quase sempre certo. “Chernobyl” é preciso historicamente e os seus realizadores dedicaram muita atenção aos detalhes.

No entanto, o heroísmo. O heroísmo de um povo, que vê na fatalidade uma maneira de estar na vida. A série também trata da luta angustiante e abnegada, travada por muitos, contra as consequências da explosão. Foram essas pessoas que salvaram a Europa, à custa da sua própria vida. Valery Legasov e Boris Shcherbina são dois desses heróis. Foram quem liderou o processo de contenção do reactor. Foi deles que se ouviram as primeiras críticas a todo o sistema nuclear soviético. Depois de assistir a esta série ficamos com um claro entendimento das enormes dificuldades com que tiveram de lidar ao longo de todo o processo. Nem a União Soviética, nem, mais tarde, a Rússia ou mesmo a Ucrânia, honraram estes heróis que salvaram todo um continente. Putin, o claro herdeiro do sovietismo, só se referiu, no seu longo reinado, duas vezes ao sucedido.

Chernobyl libertou mais material radioactivo, cerca de quatrocentas vezes mais, do que Hiroxima e Nagasaki. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram até hoje, vítimas dos efeitos directos e indirectos da radiação. É certo que serão muitas as pessoas afectadas e espalhadas por inúmeros países europeus. Exceptuando a Península Ibérica, foi detectada radiação em toda a Europa.

Foi Gorbatchov quem disse: “o desastre nuclear de Chernobyl foi a verdadeira razão do colapso da União Soviética”.

5. Desde o início desta crise, se bem repararam, foram muito poucas as vezes em que me referi a decisões governamentais, de cá e de lá, no que se refere a medidas para conter a doença. Falei de economia, e folgo em ver que algumas coisas, que eu e outros referimos como essencial, são agora realidades.

Em relação ao resto aceito a liderança mesmo não concordando com algumas coisas. Cinjo-me ao que me mandam fazer e tomo nota, pois o tempo de pedir justificações virá depois, quando tudo isto passar.

Noto que anda tudo muito abespinhado e a opinião é sempre motivo de juízos que vão muito além do que se pretende dizer. As trocas de ponto de vista andam a ficar coléricas num momento em que se exige alguma serenidade. De uma maneira ou outra, temos sido, quase todos, um pouco assim. Eu incluído.

6. Fantástica a entrevista de Ramalho Eanes à RTP. Faltam palavras para a descrever. A quem não viu, porque não a podem perder, quase se exige um esforço para que o façam. Ouçam um dos maiores de nós.

7. Aproveito este espaço para agradecer publicamente a toda a equipa da International Sharing Scholl por terem conseguido manter alguma “normalidade” nas rotinas da minha filha. Para uma criança de oito anos, cheia de energia, tudo isto parece, no início, uma enorme aventura. Depois vêm as perguntas a que respondemos da melhor maneira que sabemos.

Ter a escola a funcionar à distância, com aulas presenciais, mantendo as crianças ocupadas, tem sido fundamental para um certo equilíbrio emocional.

Bem-haja a todos.

8. “Eu tenho 85 anos. Nós, os velhos, devemos pensar que a nossa situação é igual à dos outros. E se alguma coisa há, é a obrigação suplementar de dizer aos outros que isto já aconteceu, que se ultrapassou. (...) Não saímos de casa, recorremos sistematicamente aos cuidados que nos são indicados e mais, quando chegarmos ao hospital, se for necessário, oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos” – António Ramalho Eanes

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