Os dias do vírus (III)
A normalidade autoritária pode ser um consolo, mas não deve ser um hábito. Não me apanham nesse mundo perfeito
30 de março
Já distingo os bufos no meu passeio matinal. O sinal mais evidente é o excesso de zelo, garantia de que podem bufar sem acusação de desleixo. O bufo mira quem corre até desaparecer no horizonte, e escrutina as relações de quem caminha aos pares. Tem a mão sobre o bolso como que sobre um coldre, sonhando secretamente com o disparo do telemóvel sobre o primeiro infractor. Rosna aos velhos. Pede distância dos jovens. Desconhece limites para o seu reino, e pergunta-se se existe uma diferença entre a rua e as áreas comuns dos prédios dos outros. A marca mais clara e infalível do bufo é uma máscara ao parapeito, um descanso que é também uma farda, um encosto que é também um posto.
O bufo coscuvilha quando não vigia, especula quando não espia. Confia no medo, julga-se um cidadão ao serviço do Estado. Não sabe que, se fosse um número, seria o 1984. Não sabe nada, coitado.
31 de março
Vai-se simulando uma camada de normalidade – de teletrabalho, de inovações caseiras, de conferências virtuais– que nos preserva do medo e do absurdo.
Essa camada – finíssima – é porém composta de anormalidade, e pressente-se em muitos aspectos como a aceleração de um futuro distópico e antes distante. A cada brinde contra um vídeo, a cada informação agregada do Google, a cada encomenda à porta, a cada passeio “higiénico” velado por povo e polícias de máscara, vem a impressão de que cruzamos um abismo, e que escolhas inócuas e quotidianas de hoje se arriscam a perdurar na História com um eco longo e grave.
Vamos de novo prezar o local de trabalho, ou vamos desmaterializá-lo e torná-lo numa questão doméstica? Os serviços presenciais serão valorizados, ou declarados excedentários? A amizade será mais pessoal, ou de vez convertida em performance cinematográfica?
Se é assim entre nós, com o Estado é ainda pior. O afã com que provisoriamente nos entregámos a poderes superiores promete efeitos mais definitivos. Em breve consentiremos, talvez, na obrigação de ser um espécime limpo, em bom funcionamento, destinado a trabalhar com constância e zelo, e a durar até uma extrema e controversa velhice. Um homem vigiado por móvel e relógio, cronometrado na sua produtividade e serviço, remotamente controlado nos seus movimentos e batimentos cardíacos. Um cidadão regalado, tecnologicamente defendido de doenças, malfeituras e desvios, a bem da comunidade, do SNS e do ambiente.
Este ideal é conhecido, e levou no seu tempo a loucuras que nenhum inocente gostaria de repetir.
Só que a inocência só se perde uma vez. Já sabemos que o Estado não se interessa pela nossa liberdade. E a suspeita de que a usamos mal, e que os nossos excessos se corrigem com uma vigilância compassiva e benevolente são a mais segura promessa de logro, abuso e agressão.
A normalidade autoritária pode ser um consolo, mas não deve ser um hábito. Não me apanham nesse mundo perfeito.
2 de abril
Cristiano Ronaldo exercita-se nas ruas do Funchal. O facto de ganhar liberdade quando todos a perdem exprime bem a subversão destes tempos, bem como a ambivalência do estatuto de “celebridade”. O vírus deu-lhe aquilo que nos roubou: o alívio e a grandeza do espaço público. Que aproveite.
3 de abril
Já que a oposição enterrou o machado de guerra, convém que alguém pergunte por que razão se pouparam os funcionários públicos aos sacrifícios do COVID. Num mês de inédita angústia no sector privado – meio milhão de trabalhadores em lay-off –, e quando se pedem esforços heróicos a outros trabalhadores do Estado, é extraordinária a noção de que boa parte da população se pode recolher em casa, sem trabalhar, e com o ordenado pago por inteiro pelos nossos impostos.
Estamos habituados. Os Governos aprenderam, pela fricção do dia-a-dia, até onde o eleitorado lhes permitia ir, e onde estava o terreno proibido e perigoso. Ali, onde a Troika tocou, nem o vírus mexe.
4 de abril
Apenas um caso novo de COVID-19 na Madeira. Os madeirenses aplaudem, alegram-se, louvam os seus governantes. Têm boa razão. Mas o inimigo é insidioso, invisível e imprevisível. O custo de cantar prematura a vitória é o choque de uma derrota inesperada. O COVID-19 apareceu no Porto Santo, semanas depois de estar tudo fechado.
Palmas? Sim, mas de mãos lavadas.