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Crónicas

O sentido da Política

Viver em tempos de pandemia requer adaptações e uma especial atenção às fragilidades e desigualdades. Para fazer face a estes tempos, o Governo da República determinou medidas que pretendem minorar desigualdades: as pré-existentes que tenderão a acentuar-se, e as novas decorrentes do confinamento social. Dessas medidas, saliento as que dizem respeito à violência doméstica, à habitação e aos direitos das pessoas refugiadas e imigrantes.

No que diz respeito às vítimas de violência doméstica, os exemplos da China e de França demonstram que o período de confinamento potencia novas dinâmicas de violência e deixa ainda mais desprotegidas as pessoas que já eram vítimas de violência doméstica. O poder de quem agride cresce e a capacidade de reação das vítimas diminui. Perante estas evidências, a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, reforçou o número de camas existentes nas casas abrigo e nas casas de emergência. Para além disso, criou um email ([email protected]) e uma linha de sms gratuita (3060) para onde as vítimas podem enviar pedidos de ajuda, conseguindo desta forma contornar as chamadas de voz que podem constituir um problema. O email de emergência e a linha de sms gratuita têm abrangência nacional pelo que as vítimas da Região podem recorrer a ambas.

No que diz respeito à habitação foi decretada a suspensão das ações de despejo e execução de hipotecas. Tenho recebido relatos sobre senhorios e senhorias que têm ameaçado despejar quem não consegue pagar a renda por ter ficado sem rendimentos em resultado do Estado de Emergência. Noutros casos, senhorias imbuídas de uma estranha noção de cidadania e de uma autoridade que não têm, «ordenaram» o confinamento, sob ameaça de despejo de quem furar a ordem. Não interessa que as pessoas precisem de sair para comprar alimentos, medicamentos ou suprir outras necessidades básicas.

Percebe-se esta sensação de impunidade: quando responsáveis políticos, em plena Assembleia Legislativa Regional, declaram que se estão a marimbar para a Constituição da República Portuguesa, e que as decisões arbitrárias e unilaterais têm de se impor dê lá por onde der, sejam legais ou não, é normal que os restantes cidadãos e cidadãs considerem que também podem pôr e dispor dos direitos das outras pessoas. Importa por isso que as pessoas estejam cientes de que as leis ainda são para cumprir e que não estão desprotegidas relativamente a estas arbitrariedades de pessoas que, por medo, prepotência ou ganância, tentam aproveitar-se das pessoas mais vulneráveis.

No que diz respeito às medidas que abrangem pessoas refugiadas e emigrantes, permitam-me invocar Hannah Arendt. Judia alemã, nascida em 1906, as perseguições étnicas e sociais levadas a cabo pelo Nazismo tiveram um impacto determinante não só na sua vida mas também na sua obra filosófica. Mudou-se para França em 1933, em consequência da ascensão do Partido Nazi na Alemanha. Em 1937 foi-lhe retirada a nacionalidade alemã tornando-se apátrida até 1951, quando lhe foi reconhecida a nacionalidade estado-unidense.

Em 1940 foi aprisionada num campo de concentração em território francês, primeiro por ser alemã depois por ser judia. Conseguiu escapar e a sua rota de fuga incluiu uma passagem por Lisboa, onde escreveu o ensaio «Nós, refugiados». O texto reflete sobre a condição de pária, a condição de quem foge e cujos direitos não são reconhecidos em lado nenhum. Defende que o direito à pertença é o direito que funda e dá consistência a todos os outros. Lembrei-me deste pequeno ensaio, esta semana, quando o Estado Português determinou a regularização de todos os emigrantes com pedidos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que permitirá o acesso a direitos fundamentais, como o acesso à Saúde ou a possibilidade de celebração de contratos de arrendamento ou de trabalho. O Ministro Eduardo Cabrita justificou a medida como sendo «o dever de uma sociedade solidária em tempos de crise». Esta é também uma boa notícia para tantas pessoas que, na Região, ainda não têm a sua situação resolvida e são vítimas de inúmeros abusos: arrendamentos de casa sem contratos e decisões arbitrárias sem possibilidade de apelo; contratos verbais de trabalho que depois não são pagos; apoios que tardam, acessos interditos.

A fechar, permitam-me voltar a Hannah Arendt e a uma das suas obras, «A Promessa da Política». Para a autora, a política resulta da pluralidade intrínseca aos seres humanos num horizonte relacional de reconhecimento mútuo e em que a Liberdade é sentido primordial da ação política. É obrigação do Estado criar condições para a vida em comunidade, e compete aos e às cidadãs garantir que ímpetos totalitários ou violentos não ocupam o espaço da Política. Para Arendt, a política não é dominação, não é abrir espaço à violência, não consiste em criar um fosso intransponível e desigual entre quem governa e quem é governado: a política reside numa ação conjunta que não lhe retire sentido: «Há uma resposta à questão do sentido da política tão simples e conclusiva que podemos pensar que qualquer outra será por comparação com ela manifestamente insuficiente. Essa resposta é: o sentido da política é a liberdade.»

Em tempos de pandemia, que creio transitórios, rejeito a implementação de um «mundo Covid 19» em que, em nome de um suposto estado de exceção se ensaia uma espécie de suspensão da democracia e do direito à informação, se exige a anulação do espírito crítico, se implementa a interrupção de uma ação política entre iguais.

Ficar em casa é absolutamente necessário à nossa sobrevivência. Continuar a pensar, exigir transparência, agir concertadamente, negociar, fazer parte das soluções encontradas é fundamental para resistirmos à tentação de abdicar da nossa Liberdade coletiva.

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