Os dias do vírus (VI)
Entre afrontas, indignações, e cuidados, convém lembrar que o cerco imposto a Câmara de Lobos é o acto mais opressivo que o Governo Regional já praticou
20 de Abril
Entre afrontas, indignações, e cuidados, convém lembrar que o cerco imposto a Câmara de Lobos é o acto mais opressivo que o Governo Regional já praticou. Desengane-se quem sente, do alto do seu zelo, que de bom grado se confinaria a Santa Luzia, ao Porto Moniz ou ao Caniçal por causa de um par de irresponsabilidades de um seu freguês. Os câmara-lobenses ripostam, protestam, fogem. Pela sua subsistência, mas também porque se insurgem e lhes apetece. Não é por serem “xavelhas”, é por serem humanos. Como nós.
21 de Abril
Entre a algaraviada do 25 de Abril, que se transformou praticamente num referendo da revolução, bom seria que se deslocasse a indignação para onde ela pertence, que é à celebração do 1.º de Maio.
O decreto do Governo que regulamenta o Estado de Emergência permite excepcionalmente esses festejos, ‘desde que cumpridas as orientações das autoridades de saúde’.
Assim de cabeça, não me lembro de qualquer actividade do género ser permitida ‘desde que cumpridas’ tais orientações.
Missas, festas, encontros, barracas, negócios, excursões, corridas, desporto ao ar livre, não há acatamento de recomendações que os salve.
Mesmo ignorando o lamentável folclore que se criou à volta disso, a cerimónia solene do 25 de Abril pode perfeitamente fazer-se sem riscos de Covid, e é apesar de tudo parte de uma sessão parlamentar, em ambiente controlado.
Agora no 1.º de Maio, o que se passa é escandaloso. Perante uma doença que trata todas as reuniões por igual, o Estado autoriza-se a estabelecer, em vez dos cidadãos, quais importam e quais não. Dois portugueses saem à rua para fazer a mesma coisa: um, que festeja os anos com os amigos, incorre em desobediência civil; outro, que celebra o 1.º de Maio com os camaradas, cumpre a lei.
Dir-me-ão que todos os portugueses podem, querendo, celebrar a data, pelo que a medida não é sectária. Mas é claro que nem todos os portugueses festejam essa data. Brincássemos nós com coisas sérias, e essa tese mereceria aliás a resposta de irmos todos para a rua tomar umas cervejas com uma bandeira da CGTP, abusando do direito que o Estado tão abusivamente concedeu.
O privilégio concedido aos manifestantes do Dia do Trabalhador ataca o núcleo essencial de vários direitos, liberdades e garantias, e é inconstitucional. Fôssemos um país sério, e não passava.
Vai passar.
22 de Abril
Ferro Rodrigues prossegue e insiste no seu rol de infelicidades. Não percebe, e ninguém lhe diz, que o seu problema não é de substância, mas de autoridade. Ferro é o primeiro Presidente da Assembleia da República a emergir de um arranjo parlamentar, e não do partido mais votado. Nestes seus exercícios de defesa exacerbada da democracia, devia ocorrer-lhe que não se instalou pela graça dos eleitores, mas pelo favor do seu partido.
Não é à toa que Ferro é um alvo dilecto dos populistas. É um símbolo acabado do abismo entre Poder e Povo que tais partidos julgam combater. Foi esse abismo que permitiu e fomentou a sua impopular carreira, e é ele que o sustenta na condição de segunda figura do Estado.
Diz-se que Ferro Rodrigues é bom homem. E é certo que se preocupa com a gravidade do cargo, e com a ascensão dos extremos. Se é assim, ficava-lhe bem pensar na vida.
23 de Abril
A epidemia banaliza a vigilância. O grupinho de três em piquenique, um aselha parcamente mascarado, um desgraçado despido em videochamada, uma professora que remotamente ensina, a vizinha que se deita sublime ao sol. Todos são filmados e de pronto partilhados, nessa distorção de si, num qualquer grupo de Whatsapp, e são-no sem recurso ou censura. As leis de protecção da imagem são do tempo do technicolor, de quando acartar uma câmara para a rua atribuía um cheque em branco ao portador. Os abusos são abafados pela cultura de anonimato, pela pulverização de uma responsabilidade partilhada por cada elo de uma interminável cadeia.
Na faculdade discutíamos o que era um costume, se era uma prática reiterada, ou uma prática reiterada com convicção de obrigatoriedade. Borrifei para a convicção de obrigatoriedade. O que aprendi é que os costumes acostumam, que as leis não proíbem as práticas que a sociedade entretanto banalizou e tolerou. Sucede que gravar, expor e humilhar cidadãos comuns por episódios que não os definem ou representam não é banal nem tolerável. É uma pulhice. E é uma pulhice criminosa quando envolve rastreio rasteiro, mesquinho e bilhardeiro dos hábitos e contactos de presumíveis doentes.
A crueldade não pode ser costume.
24 de Abril
Donald Trump declarou que se investigavam tratamentos envolvendo tragos de lixívia ou fulminos de raios ultravioleta. Os seus detractores conseguem exagerar a barbaridade que efectivamente disse; os seus defensores a proeza de culpar o mensageiro. As notícias deleitam-se no chorrilho como perdigueiros à caça da própria cauda.
Este maniqueísmo pateta é já consequência de uma degradação lamentável. A lixívia e os raios UV não se debatem, desqualificam-se. A doença acelera a convicção: a democracia precisa mesmo de se armar contra a estupidez.
25 de abril
25 de Abril, sempre!
Fascismo, só mais uma semaninha.