Interdição da promenade do Caniço é ilegal
Foi há duas semanas que a Câmara Municipal de Santa Cruz decidiu bloquear todos os acessos à promenade dos Reis Magos, no Caniço. Mas o que poderá acontecer a quem ultrapassar as barreiras metálicas ali colocadas? Nada. Ao que tudo indica, nenhuma sanção poderá ser aplicada, porque aquela interdição não respeita a lei.
O edital da Capitania do Funchal afixado junto às barreiras apenas interdita actividades de lazer e desporto na praia (calhau ou plataforma portuária) mas não o acesso e a circulação na promenade, conforme já esclareceu o capitão-de-mar-e-guerra José Guerreiro Cardoso. A medida da autarquia não encontra base legal nem na legislação excepcional aprovada a nível nacional relacionada com a pandemia de Covid-19 nem na regulamentação municipal, conforme explica o advogado Ricardo Vieira, especialista em Direito Administrativo.
Na passada quinta-feira dirigimos um pedido ao presidente da autarquia santacruzense para que esclarecesse qual a base legal do procedimento de encerramento do passeio marítimo do Caniço e indicasse a infracção que cometeria um cidadão que decidisse circular naquele espaço. Também questionámos sobre o prazo para a reabertura da promenade. Filipe Sousa não respondeu até ao momento e não foi publicada qualquer deliberação camarária sobre o assunto.
Entretanto, o gabinete do Representante da República, entidade que detém a competência para fazer executar as medidas do estado de emergência na Região, informou o DIÁRIO que não foi recebido qualquer pedido para a interdição do mencionado espaço público de circulação pedonal.
Vários especialistas em Direito Administrativo e regulamentação autárquica referiram ao DIÁRIO que a medida da autarquia não está escudada na lei. O advogado Ricardo Vieira fez mesmo uma análise detalhada deste procedimento e concluiu que “a decisão de interditar [a promenade dos Reis Magos] com aparente fundamento nas medidas resultantes do estado de emergência e em especial no edital da Capitania do Porto não é possível e atenta contra a lei, sendo um meio claramente desproporcional e excessivo”.
A seguir transcrevemos a análise jurídica do caso feita por Ricardo Vieira:
QUAIS AS LIMITAÇÕES DE CIRCULAÇÃO POSSÍVEIS NO ESTADO DE EMERGÊNCIA?
“O Estado de emergência excepcionalmente limita alguns direitos e liberdades fundamentais por razões de interesse maior, como acontece com as pandemias declaradas pelas autoridades competentes. Como se sabe a(s) liberdade(s) constitucionalmente garantida(s) só pode(m) ser limitada(s) em casos expressamente previstos (alíneas do n.º 3 do artigo 27.º da CRP), e apenas (ainda que temporariamente e na medida do adequado) para salvaguardar um bem comum maior (como a saúde, por exemplo) (artigo 18.º/2 CRP).
Por ser uma situação excecional e contender de forma acentuada com os nossos direitos o estado de emergência é uma das formas de restrição às liberdades sujeito a três princípios fundamentais:
- o primeiro diz respeito à necessidade de ser delimitado no tempo e no espaço, ou seja, tem de definir com clareza o âmbito territorial e o âmbito temporal;
- o segundo é inerente às competências, na medida em que define também com clareza quais as entidades que o decretam, quem o regulamenta e quem executa. A declaração de estado de emergência redefine competências e afasta da decisão alguns órgãos a quem normalmente se confia a competência;
- o terceiro é o princípio da proporcionalidade, segundo qual as medidas têm de ser as adequadas e estritamente necessárias à finalidade para que foram determinadas. Conforme refere a lei, “devem limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade”.
De acordo com este grande princípio, o estado de emergência não pode ser discriminatório e tem de garantir tratamento igual.
A alínea c) do n.º 2 do artigo 2º do Regime de Estado de Sítio e de Emergência (Lei n.º 44/86, de 30 de setembro) refere expressamente quando se estabeleça o condicionamento ou a interdição do trânsito de pessoas e da circulação de veículos, cabe às autoridades assegurar os meios necessários ao cumprimento do disposto na declaração, particularmente no tocante ao transporte, alojamento e manutenção dos cidadãos afetados.
O QUE DETERMINOU O PRESIDENTE DA REPÚBLICA EM MATÉRIA DE CIRCULAÇÃO?
O atual Estado de Emergência obedeceu a três sucessivos decretos presidenciais que em relação à livre circulação, aspeto da liberdade (artigo 27º da Constituição da Republica), determinou:
Decreto do Presidente da República n.ºs 14-A/2020 de 18 de março e 17-A/2020 de 2 de abril
Artigo 4º alínea a)
a) Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo.... na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a terceiros, pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém;
Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020 de 17 de abril
Artigo 4º, alínea a)
a) Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições simétricas ou assimétricas, designadamente em relação a pessoas e grupos etários ou locais de residência, que, sem cariz discriminatório, sejam adequadas à situação epidemiológica e justificadas pela necessidade de reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo ... na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a terceiros, pela produção e pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém;
Pese embora a redação diferente está claro, nas decisões presidenciais a presença desses três elementos:
- onde e quando;
- quem é competente para decretar as medidas de restrição ao direito de deslocação
- e a proporcionalidade, aí qualificada com a finalidade da restrição e a necessidade de ser adequada.
QUE RESTRIÇÕES O GOVERNO DA REPÚBLICA COLOCOU À CIRCULAÇÃO?
A execução confiada ao Governo desta declaração esclarece que:
Decreto n.º 2-A/2020, de 22 de Março
1 — Os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos anteriores só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos seguintes propósitos:
[...]
i) Em deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre;
...
h) Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva;
n) Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia e para alimentação de animais;
QUE RESTRIÇÕES A AUTORIDADE MARÍTIMA COLOCOU À CIRCULAÇÃO?
Estando delimitada a restrição à livre circulação dos cidadãos durante o estado de emergência a Autoridade Nacional Marítima, entidade a quem é confiada a segurança na faixa costeira e no domínio público marítimo e das fronteiras marítimas emitiu a seguinte informação publicitada no sítio da internet: “A Autoridade Marítima Nacional interditou todas as atividades desportivas ou de lazer que impliquem aglomerados de pessoas, nas praias do Continente, Madeira e Açores, de forma a minimizar a probabilidade de disseminação da COVID-19.”
Os decretos-lei 43/2002 e 44/2002 de 2 de março (na sua versão mais recente aprovada pelo DL n.º 121/2014, de 07/08) estabeleceram o sistema de autoridade marítima. A alínea e) do n.º 8 do artigo 13.º do DL 44/2002 determina que compete ao capitão do porto, no âmbito da proteção e conservação do domínio público marítimo os “editais de praia”, estabelecendo os instrumentos de regulamentação conexos com a atividade balnear e a assistência a banhistas nas praias, designadamente no respeitante a vistorias dos apoios de praia, em termos a fixar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da defesa nacional e do ambiente.
QUE RESTRIÇÕES A CAPITANIA DO FUNCHAL COLOCOU À CIRCULAÇÃO?
A Capitania do Porto do Funchal veio a emitir um edital datado de 16 de março de 2020 que determinou o seguinte:
“No âmbito das medidas decretadas pelo Governo, relativamente à pandemia causada pelo Covid-19, são interditadas todas as atividades desportivas e de lazer nas praias sob jurisdição da Capitania do Porto do Funchal”. Embora nos queira parecer que a Capitania excedeu-se nas suas competências, o edital fundamenta-se na Resolução n.º 115/2020 do Governo da RAM que no n.º 6 recomenda a suspensão de eventos que impliquem grande aglomerado de pessoas. Porém vai muito para lá da lei, pois não se restringe às atividades que envolvam aglomerado de pessoas e só essa é que estão interditadas.
A agravar esta restrição, o Município de Santa Cruz interditou a deslocação na promenade dos Reis Magos.
PODE O MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ INTERDITAR A PROMENADE DO CANIÇO?
A promenade em causa é um caminho público pertencente ao domínio público municipal. Coincide em algumas partes com o domínio público marítimo, existindo assim uma dupla jurisdição: da AMN (Capitania do Porto do Funchal) no que diz respeito à área de DPM , e o Município de Santa Cruz, nas áreas fora do DPM.
Podemos porém presumir que os acessos (as entradas desse passeio público) são apenas de domínio público municipal e portanto de jurisdição municipal.
A alínea qq) do n.º 1 do artigo 33º do Regime jurídico das Autarquias Locais e da transferência de competências do Estado (aprovado pela Lei n.º 75/2013 de 12 de setembro) diz que compete à Câmara Municipal a administração do domínio público municipal, competência que pode ser delegada no presidente e deste nos vereadores. No caso concreto os editais publicados de delegação de competências não delegam competência de administração de bens do domínio público com exceção das áreas de domínio público marítimo (praias).
Assim a possibilidade de interdição só podia ser decidida pela Câmara Municipal no seu todo, deliberação lavrada em ata e publicitada pelos meios legais.
Acresce que o fundamento do carácter público dos bens integrados no domínio público é “associado à sua primacial utilidade coletiva, isto é, á sua indispensabilidade para a satisfação normal e regular das necessidades coletivas da população”.
O domínio público municipal caracteriza-se pela sujeição a um regime jurídico especial, que a cujos bens públicos impõe a realização de fins de interesse público ou de utilidade pública, sendo o seu fundamento associado à indispensabilidade para a satisfação normal e regular das necessidades coletivas da população. No caso aquele Caminho municipal é um bem de uso comum ou seja de acesso gratuito a todos.
A sua interdição, ou seja impedir que as pessoas usufruem desse passeio, só pode ser determinada em reunião de Câmara por razões de interesse público de valor acrescido, como seja a segurança do próprio caminho.
A decisão de interditar [a promenade dos Reis Magos] com aparente fundamento nas medidas resultantes do estado de emergência e em especial no edital da Capitania do Porto não é possível e atenta contra a lei, sendo um meio claramente desproporcional e excessivo”.