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A Via Crucis da Pandemia

Governar por decreto foi aprovado na Hungria após anos de corrosão das instituições e instrumentos que garantiam a democracia. Zelemos pela nossa

Nassim Nicholas Taleb define os acontecimentos que alteram o rumo da história como «Cisnes Negros», acontecimentos raros com as seguintes características: grande impacto quando ocorrem, alto nível de imprevisibilidade e, após a ocorrência, a assunção de uma explicação que faz com que o acontecimento pareça ter sido mais previsível do que realmente foi.

A situação que vivemos é, claramente, um destes acontecimentos atípicos que tem e terá um impacto enorme na nossa vida, na nossa organização social, política e económica. Dizer que é atípico é dizer que não o previmos. Basta pensar na forma como a nossa vida decorria há mês e meio para se perceber que ninguém julgava então que hoje estaríamos com a economia paralisada e com uma grande parte da população em confinamento. Dizer que estivemos ou que estamos preparados para isto é, obviamente, querer atribuir uma previsibilidade que não existiu e um grau de conhecimento que não existe. Segundo Taleb, esta tentação de construir uma explicação de uma previsibilidade (que não existiu na realidade) é uma reação compreensível e... previsível. Lidamos mal com os desvios à norma e tendencialmente procuramos minimizar o impacto destes acontecimentos que insistem em escapar à nossa capacidade de os antever, conhecer e dominar. Por isso temos tanta gente perplexa com a mutação acelerada do que sabemos sobre este vírus e sobre esta doença. E por isso acha-se muito, reage-se muito, mas na verdade sabe-se muito pouco. E quem mais sabe, isto é, quem verdadeiramente começa a conhecer o problema, sabe que é na dúvida que está a salvação. Já quem quer que as respostas da ciência sejam as mesmas de há dois meses, ou de há quatro meses, terá sempre as suas expetativas frustradas. A alteração da informação significa que, apesar da sua imprevisibilidade, hoje a ciência sabe mais do que sabia há dois meses – e significa que no próximo mês saberá mais do que à data em que escrevo. Só assim se conseguirá a tão esperada vacina que, há partida, garantirá que esta pandemia passe definitivamente à História.

Enquanto esse tempo não chega, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a comunicação das autoridades cumpra critérios fundamentais para a sua eficácia junto da comunidade, de entre os quais destaco: uma apresentação clara dos riscos, reconhecimento do que ainda não se conhece e identificação do que está a ser feito para encontrar respostas, e as razões que fundamentam a implementação das medidas. Exorta a que toda a comunidade tenha voz e seja envolvida na resposta ao problema. A OMS alerta também para as consequências negativas muito sérias que uma comunicação equívoca, errática e ambígua pode ter na resposta à pandemia.

Identifica ainda seis critérios de uma estratégia global para o levantamento das restrições:

1.º) Confirmar que a transmissão do vírus está controlada.

2.º) Garantir que o sistema de saúde é capaz de detetar, testar, isolar e tratar todos os casos de covid-19 e rastrear todos os contactos; para o efeito, em todos os casos suspeitos deve haver testes e resultados 24 horas depois de identificados.

3.º) Assegurar que os riscos de novo surto são minimizados, nomeadamente em unidades de saúde e lares.

4.º) Implementar medidas preventivas nos locais considerados essenciais para a população – como é o caso dos locais de trabalho.

5.º) Gerir os riscos de importação de novos casos.

6.º) Capacitar a comunidade para se adaptar ao novo quotidiano e manter medidas de controlo.

Sabemos que a capacidade de controlar as situações de contágio numa ilha é francamente melhor do que em territórios com maior extensão e mais portas de entrada – e por isso estamos em fase de contenção (e não de mitigação). Mas, ainda assim, não se pode perder de vista a imprevisibilidade nem esquecer o que aprendemos com outras pandemias: a probabilidade de uma segunda ou terceira vagas.

«Pela primeira vez desde 2001, existem mais autocracias do que democracias no mundo», pode ler-se num artigo do jornal Público do passado dia 13 de abril. Mas não se pense que esta afirmação se refere apenas a outros continentes, supostamente mais propensos a estes retrocessos do que o continente europeu. Em 2019, a Hungria passou a ser o primeiro Estado não democrático a integrar a União Europeia; com a pandemia a autocracia de Viktor Órban foi reforçada através da aprovação de licença para governar por decreto, sem prazo para o regime de exceção.

No nosso País, apesar do Estado de Emergência, as decisões têm resultado de concertação, e posterior discussão e aprovação em sede de Assembleia da República.

Por cá, a Assembleia Legislativa Regional, que é o órgão legislativo e de fiscalização parlamentar, tem funcionado maioritariamente em regime de teletrabalho (nomeadamente as várias comissões) e através da comissão permanente. Se inicialmente se justificasse, a verdade é que temos inúmeros setores que, dada a sua importância, não pararam; não se justifica, portanto, a suspensão deste órgão autonómico que resulta da vontade democraticamente expressa pelos cidadãos e cidadãs, e que tem a obrigação de zelar pela normalidade democrática da Região.

Foi iniciada esta semana a discussão das condições necessárias para o funcionamento da Assembleia neste tempo de exceção que atravessamos. A partir de maio, o quórum mínimo passa a ser de um terço dos/as deputados/as (16). Até lá, continuará a depender da comissão permanente. Um avanço, sem dúvida, mas que, na minha perspetiva, poderia ter ido mais longe, nomeadamente através da consideração da participação por videoconferência dos restantes deputados e deputadas. Mas é preciso ter em atenção algumas especificidades da proposta que ferem os direitos e deveres fundamentais da representatividade de cada deputado/a nomeadamente no que diz respeito às votações. Esperemos que o bom senso impere.

Governar por decreto foi aprovado na Hungria após anos de corrosão das instituições e instrumentos que garantiam a democracia. Zelemos pela nossa.

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