Guitarrista madeirense André Santos mostra como vive sem espectáculos em Lisboa
O cancelamento de concertos atingiu todos os músicos, quer sejam mais ou menos conhecidos, deixando muitos com rendimentos mensais perto de zero, num momento sem precedentes num setor onde o público conhece apenas alguns, mas milhares são afetados.
Segundo a Associação de Promotores e Espetáculos, Festivais e Eventos (APEFE), entre 08 de março e 31 de maio foram cancelados, adiados ou suspensos 24.815 espetáculos em Portugal por causa das medidas de contenção da epidemia da covid-19. O número foi revelado em 03 de abril e a associação alertava que poderia “aumentar exponencialmente” nas semanas seguintes.
A Lusa falou com vários artistas do mundo da música que revelaram preocupação com a situação atual e incerteza quanto ao futuro, salientando que, por cada músico que dá a cara, há dezenas de ‘invisíveis’ cujas vidas dependem quase a 100% dos espetáculos ao vivo.
A tentar adaptar-se aos novos tempos está o guitarrista madeirense de jazz André Santos, que sofreu “uma razia total a nível de concertos”, tendo alguns sido adiados, “achando que a partir de setembro as coisas podem voltar a acontecer”.
Além dos concertos, “principal fonte de rendimento”, André Santos dá aulas, “cinco a seis horas por semana no Hot Clube de Portugal, agora de forma virtual”.
Desde que os espetáculos pararam, tem tido “pequenos trabalhos de gravação”, participou numa música da cantora Joana Alegre e musicou uma pequena série ‘online’ de receitas culinárias madeirenses. O primeiro não foi remunerado, o segundo sim.
Nos últimos dois anos, “que foram bons”, André Santos conseguiu “pôr algum dinheiro de lado”, que dará para se aguentar “durante uns meses”.
Além disso, valem-lhe as instituições que estão “a tentar apoiar músicos”, como o Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal, que está a promover, de forma virtual, “concertos e oficinas com artistas maioritariamente da Madeira [como é o caso de André], e os trabalhos são remunerados”. “Espero que haja outras que sigam o exemplo”, disse.
Os espetáculos constituem precisamente a maior fatia dos rendimentos nesta área. No caso do músico, produtor e DJ Rui Maia (X-Wife e GNR), a música ao vivo representa “80% da remuneração”.
Com um escritório/estúdio em casa, Rui Maia, que não se lembra de outro momento tão crítico como este, pode aproveitar o tempo “a fazer alguma produção”, mas é feita para outros artistas, que se encontram “na mesma condição”.
“Agora há uma paragem total para toda a gente que está ligada à Cultura, e mesmo no dia em que conseguirmos sair de casa, não sei qual vai ser a reação do público em relação aos espetáculos”, disse.
Em relação aos apoios que têm surgido, Rui Maia optou por não recorrer, ainda, a nenhum. “Tenho a possibilidade de me aguentar uns meses, poucos. Não recorri a nada, porque estamos a falar de empréstimos, mas não sei se irei precisar, porque não sabemos até quando iremos ficar nesta situação”.
Por seu lado, André Neves, o Maze do coletivo Dealema, enquanto trabalhador precário “há vinte e tal anos”, foi-se habituando a ter “uns meses melhores que outros” em termos de rendimentos. “O verão é sempre melhor e agora ia ser a melhor altura”, disse.
Este mês ainda conseguiu “pagar a renda e as despesas correntes”, mas no mês que vem antevê “grandes dificuldades”. Com uma filha pequena, recorreu aos apoios da Segurança Social, tanto para pais como para trabalhadores independentes, que, percebeu depois, não podem ocorrer em simultâneo, e candidatou-se aos apoios da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação GDA. Mas ainda vai tentar mais.
“Tenho que me apoiar nisso ou vou passar por tempos realmente difíceis e vou ter que contar com a boa vontade de amigos e família”, partilhou.
Maze lembra que o setor da música, como outros, “é um espelho da sociedade e do mundo: há artistas com dinheiro para muitas gerações, e outros que passam dificuldades”.
Maze acredita que “provavelmente a última coisa a acontecer serão grandes concentrações de pessoas”. “Os eventos desportivos podem acontecer à porta fechada, mas concertos não há hipótese. Podem acontecer em palcos para serem transmitidos para quem está em casa, mas ao vivo não me parece que aconteça tão cedo”, referiu, salientando que “mesmo que seja autorizado, muitas pessoas vão ter medo de ir, de estar em espaços com muita gente”.
Até lá, vai fazendo “trabalho digital” em casa, algo que faz dele “um privilegiado”. “Tenho colegas de trabalho, técnico, que não podem fazer mesmo nada, têm que arranjar alternativas noutras áreas, se conseguirem, porque se não vão passar fome”, alertou.
Em casa, embora não tenha um estúdio, Maze tem “condições mínimas para fazer captação de voz e para produzir”. “Estou a aproveitar algum do tempo que tenho livre para criar. Tenho feito música, tenho escrito, tenho tentado produzir conteúdos e provavelmente vou ter que os vender digitalmente para subsistir. Pode também ser artes visuais, fotografia, vou ter que me adaptar a estes tempos”, referiu.
No caso da baixista dos Linda Martini, Cláudia Guerreiro, os cancelamentos em casa foram em dose dupla. Os concertos dos Linda Martini foram todos cancelados, e os do marido, o guitarrista Rui Carvalho (Filho da Mãe), também.
“Não há rendimentos nem previsão de haver”, contou Cláudia.
A baixista referiu que tanto ela como o marido recebem “dinheiro de direitos de autor, mas é residual”. “Todos os músicos [que são autores] estão a recorrer à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), que não está a dar-nos nada, mas a adiantar um dinheiro que já é nosso. É uma ajuda, mas não é fazer dinheiro novo”, disse.
Além disso, “tudo o que há à volta dos músicos é ‘online’ e tudo o que é online está gratuito”. “Em termos de música acho muito complicado, a não ser que haja hipótese para publicidade, para bancos provavelmente, hipermercados, que é o que tem saída”, ironizou.
Fazendo parte de uma banda, que tinha “disco novo na calha”, as coisas complicam-se. “Nós nem nos juntamos”, partilhou.
A par da música, Cláudia Guerreiro trabalha como ilustradora, mas “não estava com trabalho nenhum naquele momento e agora ninguém quer ilustração, não é uma prioridade”.
Para aproveitar o tempo sem trabalho, tem-se dedicado à escultura. O problema é “a dificuldade de concentração e ter um miúdo de quatro anos em casa”.
Também o fadista Ricardo Ribeiro tem aproveitado o tempo livre para criar. “Uso o pessimismo como fonte de energia e tenho criado muito. Fiz duas músicas novas no espaço de duas semanas, escrevi dois textos e quatro poemas”, contou à Lusa.
No entanto, agora ficou sem concertos e sem a casa de fados onde atuava, “que fechou”, “a partir daí não mais houve fonte de rendimentos”.
No caso de Ricardo Ribeiro, os concertos estão “a ser adiados para outubro, para novembro e até para o ano que vem”.
Para tentar colmatar a falta de rendimentos, o fadista candidatou-se aos apoios da Fundação GDA, do Ministério da Cultura e da Fundação Calouste Gulbenkian, estando “à espera de respostas”. Além disso, como é autor, pediu “algum adiantamento à SPA”.
Ricardo Ribeiro vê com apreensão tudo o que se está a passar: “É uma coisa completamente nova e devastadora para muitos artistas, em concertos, casas de fado, bares de hotéis. Dói-me muito saber que há artistas que não sei como vão sobreviver até ao final do mês de abril”.
Além disso, tem uma “preocupação enorme” com os técnicos, “que sem espetáculos não têm trabalho”. “É devastador. A grande maioria são recibos verdes e não têm uma forma de ir buscar dinheiro para poder fazer face às despesas”, referiu.
Também Carlão não esquece quem o acompanha ao vivo: uma banda com cinco músicos e uma série de técnicos, “que não têm ‘back-up’ dos direitos de autor, por exemplo”. “Essa malta toda está lixada”, disse.
Este momento apanhou todo o setor da música de surpresa e lembrou a todos “a fragilidade da atividade” que exercem.
Embora receba direitos de autor, no caso de Carlão, como no da maior parte dos músicos, “o grosso do rendimento é dos concertos”. Com as coisas que conseguiria fazer agora, “compor e gravar, nunca se vai buscar dinheiro nenhum”.
“Já não faturo nada há uns tempos e não vou faturar durante uns tempos, por causa dos cancelamentos e adiamentos de concertos, mas estou a viver ainda das coisas do ano passado. Ainda dá durante uns tempos para a coisa estar tranquila”, contou à Lusa.
A preocupação com outros músicos e com os técnicos e restantes profissionais que “fazem parte de um todo do espetáculo” é partilhada pela fadista Kátia Guerreiro.
“Estou muito preocupada, não só comigo mas com todas as pessoas que fazem parte deste meio. Nem todos os artistas são ‘mainstream’, há artistas com menos visibilidade e com menos rendimentos, que muitas vezes servem para pagar as suas contas imediatas, para comer, pagar contas de casa, impostos e pouco lhes sobra e vendo atividade reduzida a zero devem estar em franquíssima dificuldade”, alertou.
A fadista lembra também os “motoristas, ‘road managers’, técnicos de luz e som, agências, empresas de aluguer de material de som e luz”. “Tudo faz parte de um todo do espetáculo. Não sou só eu, tenho dezenas de pessoas à minha volta. Estou preocupada e quero muito encontrar soluções que possam ser benéficas a quem está à minha volta. Vou tentar ajudar os meus e acho que cada artista tem obrigação de tentar encontrar soluções para ajudar os seus também”, referiu.
Kátia Guerreiro tinha concertos agendados tanto para Portugal como para o estrangeiro, todos adiados ou cancelados.
“Hoje o nosso maior sustento são os rendimentos tirados dos espetáculos. Essa anulação por completo dessa possibilidade faz com que estejamos em situação de grande contenção e de grande sufoco, porque não sabemos quanto tempo isto vai durar”, afirmou.
A fadista reforça a ideia defendida por outros músicos: “Vamos ser os últimos a recuperar atividade, porque a nossa atividade implica ajuntamentos, aglomerados de gente”.
O músico Miguel Ângelo relembra que “os artistas estão no palco, mas não estão sós, há muito mais gente que depende das prestações ao vivo”.
O vocalista dos Delfins lembra que “enquanto há músicos que conseguem ser apoiados”, os técnicos “não”.
“Tem que haver soluções para que haja visibilidade para todas essas pessoas, para que comecem a ser vistos como trabalhadores cruciais para que os artistas e bandas tenham êxito”, referiu.
Com 35 anos de carreira, Miguel Ângelo lembra que “nem na famigerada crise, em que houve grande redução do mercado de trabalho, houve uma situação em que se ficasse de um dia para o outro com zero receitas”.
“Se numa primeira fase toda a gente ficou com o rendimento zero de um dia para o outro ainda se pensou que a partir do verão as coisas voltavam, isso mudou. Há muitos municípios que estão a desmarcar coisas até final do ano”, alertou.
O músico lembra que num contexto de confinamento social, “os conteúdos culturais são o que está alimentar as pessoas, e isso está a fazer com que as pessoas se apercebam da necessidade da cultura nas suas vidas, e isso pode ser um bom reinício”.